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Mario Quintana

Mario Quintana

Mario Quintana – Bilhete

mario quintana

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…

 

Mario Quintana, Esconderijos do tempo

Mario Quintana

Mario Quintana – Depois

mario quintana

Nem a coluna truncada:
Vento.
Vento escorrendo cores,
Cor dos poentes nas vidraças.
Cor das tristes madrugadas.
Cor da boca…
Cor das tranças…
Ah,
Das tranças avoando loucas
Sob sonoras arcadas…
Cor dos olhos…
Cor das saias
Rodadas…
E a concha branca da orelha
Na imensa praia
Do tempo.

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – Tarde antiga

mario quintana

Era a mais suave, a mais azul das tardes…
tão calma que só poderá ter sido
naqueles tempos do bom Reyno Unido
de Portugal, Brasil & Algarve…
Te lembras dessas tardes, Dom João VI?
Pois foi por uma dessas nossas tardes.
Estava eu a meditar um texto
do meu querido Manuel Bernardes
eis senão quando… nada aconteceu:
apenas, eu… não era eu…
nem tu o Rei… as almas não têm nome…
e — no Todo onde tudo se consome —
a mesma pura chama consumia
minha miséria e tua hierarquia!

 

Mario Quintana, Antologia poética

Mario Quintana

Mario Quintana – Operação Alma

mario quintana

Há os que fazem materializações…
Grande coisa! Eu faço desmaterializações.
Subjetivações de objetos.
Inclusive sorrisos,
Como aquele que tu me deste um dia com o mais
puro azul de teus olhos
E nunca mais nos vimos. (Na verdade, a gente nunca
mais se vê…) No entanto,
Há muito que ele faz parte de certos estados do céu,
De certos instantes de serena, inexplicável alegria,
Assim como um voo sozinho põe um gesto de adeus
na paisagem,
Como uma curva de caminho,
Anônima,
Torna-se às vezes a maior recordação de toda uma
volta ao mundo!

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – Sei que choveu à noite

mario quintana

Sei que choveu à noite. Em cada poça há um brilho
[azul e nítido.
Sobre as telhas, os diabinhos invisíveis do vento
[escorregam num louco tobogã.
Um mesmo frêmito agita as roupas nos varais e os
[brincos nas orelhas…
Ó ânsia aventureira! Parece que surgem bandeirolas
[nos dedos mágicos dos inspetores do tráfego… Ah,
[que vontade de desobedecer os sinais!
E mesmo as escolas, onde agora está presa a
[meninada, nunca essas escolas rimaram tão bem
[com opressivas gaiolas…
Só deveria haver escolas para meninos-poetas, onde
[cada um estudasse com todo o gosto e vontade
o que traz na cabeça e não o que está escrito nos
[manuais.
E, se duvidares muito, daqui a pouco sairão voando
[todas as gravatas-borboletas, enquanto os seus
[donos atônitos aguardam o sinal verde nas
esquinas.
[Decerto elas foram em busca de novos ares…
Mas sossega, coração inquieto. Não vês? Sob o azul
[cada vez mais azul, a cidade lentamente está
zarpando
[para um porto fantástico do Oriente.

 

Mario Quintana, Baú de espantos

Mario Quintana

Mario Quintana – O descobridor

mario quintana

Ah, essa gente que me encomenda
um poema
com tema…
Como eu vou saber, pobre arqueólogo do futuro,
o que inquietamente procuro
em minhas escavações do ar?
Nesse futuro,
tão imperfeito,
vão dar,
desde o mais inocente nascituro,
suntuosas princesas mortas há milênios,
palavras desconhecidas mas com todas as letras
misteriosamente acesas
palavras quotidianas
enfim libertas de qualquer objeto
E os objetos…
Os atônitos objetos que não sabem mais o que são
no terror delicioso
da Transfiguração!

 

Mario Quintana, Baú de espantos

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção paralela

mario quintana

Por uma escada que levava até o rio…
Por uma escarpa que subia até as nuvens…
Pezinhos nus
Desceram…
Mãos nodosas
Grimparam…
E havia um coraçãozinho que batia assustado, assustado…
E um coração tão duro que era como se estivesse parado…
Um escorria fel…
O outro, lágrimas…
No rosto dele havia sulcos como de arado…
No rosto dela a boca era uma flor machucada…

E até a morte os separou!

 

Mario Quintana, Canções seguido de Sapato florido e A rua dos cataventos

Mario Quintana

Mario Quintana – Esperança

mario quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…

 

Mario Quintana, Antologia poética

Mario Quintana

Mario Quintana – A primeira aventura

mario quintana

O corpo se esfez na terra:
o sopro que Deus lhe dera
está livre como o vento.

Nunca pensou que pudesse
andar por tantas lonjuras
como anda o pensamento.

Mas não era de turismos…

Voltou, ficou por ali…
leu o resto de uma página
que deixara interrompida…

Sentou no topo da escada.
Sentou à beira da estrada.
Morte — que grande estopada!

Até que um Anjo Glorioso
passou
olhou
não viu nada

… um anjo tão esplendente
que a própria luz o cegava!

 

Mario Quintana, Apontamentos de história sobrenatural

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção de inverno

mario quintana

O vento assovia de frio
nas ruas da minha cidade
enquanto a rosa dos ventos
eternamente despetala-se…

Invoco um tom quente e vivo
— o lacre num envelope? —
e a névoa, então, de um outro século
no seu frio manto envolve-me….

Sinto-me naquela antiga Londres
onde eu queria ter andado
nos tempos de Sherlock — o Lógico
e de Oscar — o pobre Mágico…

Me lembro desse outro Mario
entre as ruínas de Cartago
e me pergunto: — Aonde irão
morar nossos pobres fantasmas?!

E para sempre perdido
nas ruas da Cidade Nova
o vento procura, em vão,
ler os cartazes antigos…

 

Mario Quintana, Apontamentos de história sobrenatural

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção de um dia de vento

mario quintana

O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.

As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz.

Nunca a água foi tão pura…
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.

E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule…

Menos um lugar na mesa,
Mais um nome na oração,
Da que consigo levara
cruz, âncora e coração
(E o vento vinha ventando…)

Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão!

 

Mario Quintana, Canções

Mario Quintana

Mario Quintana – Inscrição para uma lareira

mario quintana

A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida…

Eu estava dormindo e acordaram-me
… e me encontrei num mundo incerto e louco!
Mas quando eu começava a compreendê-lo
um pouco,
já eram horas de dormir de novo…

 

Mario Quintana, Antologia poética

Mario Quintana

Mario Quintana – As mãos de meu pai

mario quintana

As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
— como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre
cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se
chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua
cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste
alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah! como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas…
essa chama de vida — que transcende a própria vida
… e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

 

Mario Quintana, Antologia Poética

Mario Quintana

Mario Quintana – Este quarto…

mario quintana

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto…

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim…

 

Mario Quintana, Antologia Poética

Mario Quintana

Mario Quintana – O autorretrato

mario quintana

No retrato que me faço
— traço a traço —
Às vezes me pinto nuvem,
Às vezes me pinto árvore…

Às vezes me pinto coisas
De que nem há mais lembrança…
Ou coisas que não existem
Mas que um dia existirão…

E, desta lida, em que busco
— pouco a pouco —
Minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!

 

Mario Quintana, Antologia Poética