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Gastão Cruz

Gastão Cruz

Gastão Cruz – Depois dum sonho

Gastão Cruz

Não deixaste o deserto mas
árvores na casa Em sonho és
o sedutor arbusto reflectindo
para sempre o meio-dia O sol
porém desfaz-se quando as pálpebras
num ardor se entreabrem e te ocultas
nos ângulos do quarto Ausente
és pois o centro
feroz da minha vida transitas
como serpente fria no ventre
contraído escondes-te na
floresta que sem cessar se expande
onde dormíamos E erras
nos limites duma casa
destruída por raízes

Gastão Cruz, Rua de Portugal

Gastão Cruz

Gastão Cruz – Chegada

Gastão Cruz

Parece-me irreal que tenhas vindo,
quase irreconhecível: onde estava
o impossível
eco de vida, íngreme, o passado
tornado mais passado?

Parece-me real que tenhas ido
ser outro ser, distante desta praia
Reconheci-te?
A lua minguante
de agosto iluminou tua chegada.

Gastão Cruz, Escarpas

Gastão Cruz

Gastão Cruz – Nas muralhas do mar

Gastão Cruz

Qual dentre as primeiras do
dia é a imagem
da gruta onde a voz
se repercute o
tema do extenso poema
falhado tal o autor o dizia
ansiosamente prostrado
na adoração da morte Do seu

corpo esgotado
pela algidez das águas não sobrava
nenhum tempo vivido entre
as muralhas gerais dessas
cidades Assim
como uma vaga suicida
marcado pela água o corpo à gruta
tal a voz à imagem refluia.

Gastão Cruz, O pianista

Gastão Cruz

Gastão Cruz – Barco

Gastão Cruz

Vou hoje começar a recordar-te
embora a luz entrando sob o arco
escasso da realidade possa dar-te
a ilusão ainda de que o barco

simplesmente balouça mas não parte
Já partiu afinal do porto parco
onde vieste perceber a arte
de nada ser; no mesmo barco marco

lugar como num ventre: igual escala
é a perda da vida que ganhá-la

Gastão Cruz, Repercussão

Gastão Cruz

Gastão Cruz – Canção primeira

Gastão Cruz

Nem o esforço dos banhos as areias
o pranto as frias dunas as vidraças
o por mim puro inverno já passado
nem maio nem lisboa nem a tarde
o verão de outro ano nem dos banhos
a vidraça o esforço arrefecendo
da água
nem a voz fementida
o ledo esforço poderia alterar

O esforço nestas praias era o
da luz de agosto do amor da
esperança
o inverno traçou
as ruas de vidraças
janelas apagadas
fogo disperso de perdidas falas

E depois que as vidraças se acenderam
da ferida de inverno deste ano
a janela apagada
o esforço em frias dunas empregado
depois que só o claro pão do rio
aquece a treva de hoje as frias ruas
e se matam os homens ao clarão
de lisboa
depois que os banhos são
esta dor pura no calor da pele
nas ruas de lisboa o nosso esforço
arrefece o inverno

Assim lutamos
e se alguém te perguntasse canção
como não rompe
o puro som do pranto nestas praias
podes-lhe responder que porque o esforço
se move sobre as dunas
e hasteia nas vidraças

 

Gastão Cruz, Poesia (1961-1981)