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Millôr Fernandes

Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – Coautoria

Millôr Fernandes

Há o escritor que acredita
que, bem, só ele é que leu
e repete a toda hora:
“O grifo é meu”.

Não resiste à tentação
de tornar um pouco seu
o pensamento dos outros:
“O grifo é meu”.

Achando-se bem mais profundo
do que o autor e do que eu,
ele diz, sempre que pode:
“O grifo é meu”.

Seguro da descoberta
qual um novo Galileu
não contém o seu eureka:
“O grifo é meu”.*

  • O grifo é meu.

Millôr Fernandes, Poemas

Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – Poemeu a superstição é imortal

Millôr Fernandes

Quando eu era bem menino
Tinha fadas no jardim
No porão um monstro albino
E uma bruxa bem ruim.

Cada lâmpada tinha um gênio
Que virava ano em milênio
E, coisa bem mais perversa,
Sapo em rei e vice-versa.

Tinha Ciclope, Centauro,
Autósito, Hidra e megera,
Fênix, Grifo, Minotauro,
Magia, pasmo e quimera.

Mas aí surgiram no horizonte
Além de Custer e seus confederados
A tecnologia mastodonte
Com tecnologistas bem safados.
Esses homens da ciência me provaram
Que duendes, bruxas e omacéfalos
Eram produtos imbecis de meu encéfalo.
Nunca existiram e nunca existirão:
uma decepção!

Mas continuo inocente, acho.
Ou burro, bobo, ou borracho.
Pois toda noite eu vejo todo dia
Tudo que é estranho, raro, ou anomalia:
Padres sibilas
Hidras estruturalistas
Ministros gorilas
Avis raras feministas
Políticos de duas cabeças
Unicórnios marxistas
Antropólogas travessas
Mactocerontes psicanalistas
Cisnes pretos arquitetos
Economistas sereias
Democratas por decreto
E beldades feias
Que invadem a minha caverna
E me matam de aflição
Saindo da lanterna
Da televisão.

Millôr Fernandes, Poemas

Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – Poeminha incomparável

Ele é rico
Tem um dinheiro infinito
Tem conforto e paparico
Mora bonito
Não tem pressa
Nem é aflito
Vive à beça
Come do bom e melhor
Faz tudo que pensa e quer
Conhece o mundo de cor
E pode escolher mulher.
Eu sou pobre,
Triste e feio,
Empate na vida
Coluna do meio
Perdi a corrida
Vivo com receio
Pois ninguém me ama
Ninguém me quer
Ninguém me chama
De Baudelaire.
Mas se alguém acha
Que estou a fim
De trocar com ele:
Estou sim!

 

Millôr Fernandes, Poemas

Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – A cigarra e a formiga

Millôr Fernandes

Cantava a Cigarra
Em dós sustenidos
Quando ouviu os gemidos
Da Formiga
Que, bufando e suando,
Ali, num atalho,
Com gestos precisos
Empurrava o trabalho;
Folhas mortas, insetos vivos.
Ao vê-la assim, festiva,
A Formiga perdeu a esportiva:
“Canta, canta, salafrária,
E não cuida da espiral inflacionária!
No inverno
Quando aumentar a recessão maldita
Você, faminta e aflita,
Cansada, suja, humilde, morta,
Virá pechinchar à minha porta.
E na hora em que subirem
As tarifas energéticas,
Verás que minhas palavras eram proféticas.
Aí, acabado o verão,
Lá em cima o preço do feijão,
Você apelará pra formiguinha.
Mas eu estarei na minha
E não te darei sequer
Uma tragada de fumaça!”
Ouvindo a ameaça
A Cigarra riu, superior,
E disse com seu ar provocador:
“Estás por fora,
Ultrapassada sofredora.
Hoje eu sou em videocassete,
Uma reprodutora!
Chegado o inverno
Continuarei cantando
– sem ir lá –
No Rio,
São Paulo,
E Ceará,
Rica!
E você continuará aqui
Comendo bolo de titica.
O que você ganha num ano
Eu ganho num instante
Cantando a Coca,
O sabãozão gigante,
O edifício novo
E o desodorante.
E posso viver com calma
Pois canto só pra multinacionalma.”

 

Millôr Fernandes, Poemas

Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – Poesia exploratória

Millôr Fernandes

Quem alisa os meus cabelos?
Quem me tira o paletó?
Quem, à noite, antes do sono,
acarinha meu corpo cansado?
Quem cuida de minha roupa?
Quem me vê sempre nos sonhos?
Quem pensa que sou o rei desta pobre criação?
Quem nunca se aborrece de ouvir a minha voz?
Quem paga o meu cinema, seja de dia ou de noite?
Quem calça os meus sapatos e acha meus pés tão lindos?
Eu mesmo

 

Millôr Fernandes, Essa cara não me é estranha e outros poemas

Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – Poeminha última vontade

Millôr Fernandes

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr.

 

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Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – Certidão poeminha à certeza total

Millôr Fernandes

Eu sei, rapaz, confesso
Que estava errado ontem
E você, certo.
Mas você não estava certo
De que eu estava errado.
Eu, desde o início,
Admiti a hipótese
De você estar certo.
Politicamente eu agia errado.
Mas estava aberto no meu erro.
Você, fechado, em defesa,
Amedrontado na sua certeza.
Errado, espiritualmente
eu estava certo
E você, certo, se apoiava
Numa atitude humana viciada.
Tranquilo, aqui estou eu, errado.
Certo, afirmado,
Certamente você está muito magoado.

 

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Millôr Fernandes

Millôr Fernandes – Poesia Matemática

Millôr Fernandes

Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base.
Uma Figura Ímpar;
Olhos romboides, boca trapezoide,
Corpo octogonal, seios esferoides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela
Até que se encontraram
No Infinito.
“Quem és tu?” indagou ele
Com ânsia radical.
“Eu sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
— O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs —
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas senoidais
nos jardins da Quarta Dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar
Mais que um lar,
Uma Perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal.
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

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