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João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Tecendo a Manhã

joao cabral de melo neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Melo Neto, Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – A ANDRÉ MASSON

joao cabral de melo neto

Com peixes e cavalos sonâmbulos
pintas a obscura metafísica
do limbo.

Cavalos e peixes guerreiros
fauna dentro da terra a nossos pés
crianças mortas que nos seguem
dos sonhos.

Formas primitivas fecham os olhos
escafandros ocultam luzes frias;
invisíveis na superfície pálpebras
não batem.

Friorentos corremos ao sol gelado
de teu país de mina onde guardas
o alimento a química o enxofre
da noite.

João Cabral de Melo Neto, Melhores poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Poema

joao cabral de melo neto

As palavras tornaram-se inúteis
nesta manhã que desceu
muito mais leve muito mais clara.
Os homens trocam sorrisos
subitamente esquecidos
de que os relógios vão dar meia-noite.
Mas nos países sem palavras
os generais incendeiam pianos
dos pianos heroicos nascem florestas
e outros lamentos são gritados
para as janelas acesas
que guardam antigos remorsos.

João Cabral de Melo Neto, Poesia completa

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – A hora única

joao cabral de melo neto

Os homens perderam-se
depois da madrugada.
Soprou do mar, das montanhas
do amigo morto
e dos amantes jamais suspeitados
uma viração imprevista
e a escuridão
que retardou para sempre
o aparecimento do sol
fez secar as flores colhidas
que aviões misteriosos deixaram cair
para serem distribuídas em profusão
entre as noivas de branco
nas salas de visita.

João Cabral de Melo Neto, Poesia Completa

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – O sábio louco

joao cabral de melo neto

O sábio louco ia arrumando pacientemente
os pedaços de corpos humanos que caíam
que caíam como chuva
que vinham nas asas das abelhas
e nos sinais dos telégrafos Morse.

Depois da beira do abismo
um a um os corpos iam se despencando
assim mesmo de braços cruzados
atropelando no caminho
os automóveis e as almas penadas.

João Cabral de Melo Neto, Poesia completa

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Nenhuma filha no mundo

joao cabral de melo neto

Nenhuma filha no mundo
mereceu um tal poema.
Não sei de amor de mãe
que chegasse a essa forma extrema.

Não é você de hoje em dia
tua compostura sevilhana,
miúda, rebelde e tudo
que há de Sevilha a Triana.

É você quando não era
você quando não ainda
você coisa recém-criada
milagre da vida e da rotina.

Não sei de quem no mundo
em que o amor materno
se tenha mostrado bastante,
autossuficiente, completo.

João Cabral de Melo Neto, João Cabral de Melo Neto em 8 tempos

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – A lição de poesia

joao cabral de melo neto
  1. Toda a manhã consumida
    como um sol imóvel
    diante da folha em branco:
    princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

  1. A noite inteira o poeta
    em sua mesa, tentando
    salvar da morte os monstros
    germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da ideia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

  1. A luta branca sobre o papel
    que o poeta evita,
    luta branca onde corre o sangue
    de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis – naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

João Cabral de Melo Neto, Melhores poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – A fábrica de tabacos

joao cabral de melo neto

Lá trabalharam as cigarreiras,
quase nuas pelo calor,
discutindo, freiras despidas,
teologias de um certo amor.

Enquanto enrolavam cigarros,
se trocavam jaculatórias,
com palavras desse amor cru
omitidos pelas retóricas.

Lá um tempo trabalhou Carmen,
adensando mais a atmosfera
de sexo, de carne mulher,
que isso tudo emanava dela.

Sobre o portal um anjo de pedra:
pronta, na boca, uma trombeta.
Faria soá-la, se dizia,
se um dia entrasse uma donzela.

Hoje, não há mais operárias.
Hoje em dia, é a Universidade.
Tudo mudou, exceto o anjo
que mudo ameaça ainda, debalde.

João Cabral de Melo Neto, A literatura como turismo

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Os rios

joao cabral de melo neto

Os rios que eu encontro
vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.

João Cabral de Melo Neto, O rio

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – O poema

joao cabral de melo neto

A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem
nadando no poço
negro e fecundo?

Que outros deslizam
largando o carvão
de seus ossos?

Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?

*

O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.

É muitas vezes
o triste e pobre
papel de embrulho;

é de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?

João Cabral de Melo Neto, Melhores poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – O engenheiro

joao cabral de melo neto

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.

João Cabral de Melo Neto, Melhores Poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Marinha

joao cabral de melo neto

Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram
agarrar?

No sono das mulheres
cavalos passam correndo
em ruas que soam
como tambores.

Os homens têm espelhos de bolso
onde os gestos das amadas
(as amadas demoradas
se repetem).

Vi apenas que no céu do sonho
a lua morta já não mexia mais.

João Cabral de Melo Neto, Melhores poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Ponto de desintoxicação

Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.

João Cabral de Melo Neto, Melhores poemas

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto – Pirandello II

joao cabral de melo neto

Sei que há milhares de homens
se confundindo neste momento.
O diretor apoderou-se de todas as consciências
num saco de víspora.
Fez depois uma multiplicação
que não era bem uma multiplicação de pães
de um por dez por quarenta mil.
Tinha um gesto de quem distribui flores.
A mim me coube um frade
um pianista e um carroceiro.
Eu era um artista fracassado
que correra todos os bastidores
vivia cansado como os cavalos dos que não são heróis
serei um frade
um carroceiro e um pianista
e terei de me enforcar três vezes.

João Cabral de Melo Neto, Selected poetry