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Bruna Lombardi

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Direção

Quando me perdi de mim,
eu, assombrada
com o que acontecia à minha volta,
tentei achar a porta da morada
de um lugar que já não estava mais
onde o deixei.

Já não sabia mais qual o caminho
onde achar um mapa ou estrela que orientasse
se a voz de Deus já não chegava nesse abismo
se já não havia mais quem me escutasse.

Se eu soubesse que cada pecado que cometi
e quando, mesmo doendo, eu dei a outra face,
cada batalha que enfrentei
e cada vez que deixei que me cortassem,
que tudo isso foi a mistura necessária
pra que eu aos poucos me tornasse
a purificação desse estado de coisas
que agora me transforma no que sou.

Não existe mais procura do caminho.
O caminho é apenas onde estou.

 

Bruna Lombardi, Clímax

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Trajeto

Eu fui pisando no medo
até chegar na coragem.
Eu disse a ele não chora
que a vida da gente demora
pra ir aonde a gente quer.

Só que o lugar é agora, é aqui
no que tá acontecendo
não adianta ficar prevendo
e pensando no que virá
que a gente esquece do agora
e só fica preocupada.
O bom mesmo é a trajetória
porque não existe a chegada.

A gente só sabe mesmo
é que não sabe nada.
Até que a gente descobre
que a gente sabia tudo
mas tudo estava escondido.
E o tempo não foi perdido.
Foi o tempo da jornada.

Então eu disse vem junto,
a gente vai nessa trilha
nessa doce caminhada
com toda dificuldade
que existe em qualquer viagem.

Aprende, resiste, reinventa,
erra, desiste ou tenta
mais uma vez e acha jeito
de achar uma passagem.
Vem pra perto, fica junto
e vamos indo pelo medo
até chegar na coragem.

 

Bruna Lombardi, Clímax

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Preparo

Me preparo para ser o que sou
e me preparo lenta
como lentamente se preparam
poções, venenos, a gestação.

Lentamente como se detona uma explosão,
como voam os estilhaços pelo espaço.

Me preparo para ser o que sou
com a lentidão de um voo
e me preparo sem pressa.

Tudo o que virá agora começa
lento como o uivo dos lobos,
o derramar da lava dos vulcões.

Lenta como a vingança de famílias
que atravessa gerações.

Lenta como a luz veloz,
o gosto do alcaçuz, a voz
de alguém que chama.

Lenta como a bala de revólver
que se projeta e atinge.

Lenta como a flecha
que se arremessa no alvo
e acerta o ponto exato.

Como o tato do homem que me toca
lentamente e toca e toca
e toca essa música
que há anos me acompanha.

Me preparo para ser o que sou
Simples e tamanha.

 

Bruna Lombardi, Clímax

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Depois

A noite terminou. Tu e eu, nós estivemos juntos
a derrubar sombras, a encher a casa de vozes e
os copos de conhaque. A enrolar nos tapetes
recordações estranhas, cheias de veludo, de
casas demolidas, de pó, de liquens, de ferrugem.

Tu e eu em muitas páginas atrás tínhamos outro colorido,
outro peso, outra respiração. Havia apitos de trens
cortando túneis e passagens poeirentas de vacas.
Havia hotéis suburbanos e lençóis cheirando a úmido e
lilases.

Tu e eu estivemos juntos a evocar fantasmas
cavernas, grades, vazios, cicatrizes, papoulas, muros,
sinais, doçuras, estações,
enquanto o ar nos vigiava com a impaciência do tempo.
Juntos a repartir coisas fermentadas, despojos
dos náufragos na história de um porto.

Juntos ouvindo a pulsação das veias da parede
onde corre um sangue silencioso,
as paredes cobertas de papel e manchas e rachaduras e
marcas de mãos e marcas de goteiras.
Juntos trançando um fio interminável
espantando os espíritos da noite que vão enlouquecendo
as coisas
espantando os espíritos como se espantam moscas.

Bruna Lombardi, Poesia Reunida

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Amálgama

Homem de terra, de argila e de farinha
de raízes no solo e muitas fontes
o mesmo sol que te satura me mora nas entranhas
o mesmo fio que te liga à terra me fez de presa.
A mesma carne, a tua, é fraca em mim
em mim que já sou feita de tuas ânsias
de tuas névoas, de teu suor e teu conflito.
O mesmo cheiro de tuas partes em minhas mãos resiste
ao vento de poeira. Às estações e ao isolamento.

Já não sou tua, é certo. Talvez eu nunca fosse,
talvez tivesse sido, talvez um dia eu seja.
Talvez te habite em sonhos recônditos
talvez nem te dês conta.
Talvez já nem percebas. Talvez ainda não saibas.
É tão vasto o sortilégio. Tão infinitas
as marcas de teus pés no meu passado
de tuas mãos pelo meu corpo.

Homem de pedaços. De sulcos cavados na pedra.
Talvez eu seja o rio que te corre por cima
são águas minhas as que te corroem
e te deixam em sedimentos,
são seixos teus que carrego no meu leito,
são partes tuas as que me dão forma.
É barro teu o que me turva.

Homem de asas. Companheiro,
é através de teus sentidos o meu contato.
A minha noite tem a tua cumplicidade.
A tua serpente possui o meu veneno.
O mesmo sangue. É inútil que te afastes.

Bruna Lombardi, Poesia Reunida

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Indicações

É a primeira estrada depois do túnel e antes do sinal
é o primeiro rosto que apresentar sinais de cansaço
é um olhar sobrecarregado de visões e sobretudo enojado
é a boca mais calada.

São duas mãos também, mas sem nenhum sentimento
é uma inocência gasta. Uma apatia de revolta
é um que está sempre um pouco ausente
e cuja ausência é a sua melhor parte.

Não tem amigo, nem cachorro, nem possibilidade
nem sequer uma liberdade que o prenda
e tem uma marca na testa e algumas não visíveis
costuma assobiar pra disfarçar a vida.

É possível que você o encontre. Quase não sai.
E depois anda devagar pra ver as coisas.
É a primeira estrada atrás do muro branco
e bem depois daquela grande curva.

Bruna Lombardi, Poesia Reunida

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Interjeição

Qual é a atitude
que você está tomando, moço?
Que grito você está dando
que eu não ouço?
Que é que está adiantando
falar grosso?
Que laço, que fita, que farsa,
que nó é esse amarrado
no pescoço?
Moço, que palhaçada, que festa
é essa? Que luz
se nos taparam o sol?
Que é que resta, que é que presta,
como é que se pode nadar
no meio de tanto anzol?

E quando a corrida começa
todo mundo disparado
pisando em quem tropeça.

Moço, que incongruência
um sorriso numa hora dessa…

Bruna Lombardi, Poemas Reunidos

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Arremesso

Por que despertar em mim esse animal
alucinado. Animal de olhos de fogo.
Selvagem e louco. Esse animal acuado
que perde sangue no jogo. Essa fera
que te ataca e te resiste. Que, por pouco,
não te mata. Ah, essa desenfreada que me existe
e me devora. Por que despertá-la agora,
já que há tanto vinha adormecida.
Por que assustá-la assim, em meio ao sono.
Por que arrancá-la bruscamente de seu sonho
e transportá-la de repente para a vida.
Por que despertar em mim essa cavala doida
que vai te galopar de corpo inteiro. Enlouquecida,
que vai se ferir em meio ao trote. Por que atiçar esse bicho
que nessa luta vai morrer primeiro,
que vai morrer de fome, de grito, de garganta enxuta,
de tanta entrega. Dilacerado da tanta força bruta.
Por que despertar essa besta que me habita
que se torna cruel e desumana quando aflita.
Por que gritar com ela no silêncio de um sono branco
em que já vinha há tanto. Por que provocá-la em meio ao espanto
quando ainda não era o seu tempo.

Bruna Lombardi, Poemas Reunidas

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Pra que sejamos necessários

Transfere de ti pra mim essa dor
de cabeça, esse desejo, essa violência.
Que careça em ti o meu excesso
e que me falte o que tu tens de sobra.

Que em mim perdure o que te morre cedo
e que te permaneça o que tenho perdido.
Que cresça, se desenvolva um teu sentido
que em mim desapareça.

Dá-me o que de possuir tu não te importas
e eu multiplico o que te falta e em mim existe
para que nosso encaixe forme uma unidade – indivisível –
de que não se possa subtrair uma metade.

Bruna Lombardi, Poesia Reunida

Bruna Lombardi

Bruna Lombardi – Microcosmo

Adelaide pega o baralho 
vamos fazer um jogo 
hoje eu vou ficar em casa 
lá fora nada de novo 
Senta perto da janela 
como o mundo anda depressa 
Vamos, eu dou as cartas 
e você começa. 
Que grito é esse lá fora? 
A rua tremendo de medo 
Um tiro, um morto na rua… 
Já fez canastra, tão cedo? 
mas tem curinga, tá suja 
(mas se suja é a própria vida). 
Com que direito alguém força 
e controla, e manda, e rege, e mata, e marca, deixa ferida 
Do rei eu não preciso 
nem sei qual carta me serve 
(nem sei de outra vida) só intuo outra forma 
mais pura. Que o mundo está doente, está com febre. 
Pronto. Peguei o morto 
(e o da rua?) o mundo tem tantas calçadas 
tem até congestionamento. Ih, Adelaide 
este morto não tá bom, só tem cartas erradas 
E o valete não me veio 
e eu tinha esperado tanto 
e eu choro, Adelaide, e o sangue cobre as ruas da cidade 
do mundo vermelho de espanto. 

E o valete não me veio 
Cobre esta paisagem com as cores da delicadeza 
cobre a morte, a dor, a miséria, a violência. 
Tinge. Adelaide, o ás é mesa? 
Eu compro. Quem compra tem (sociedade de consumo) 
graças à propaganda e à Santa Comunicação 
o povo anda em rebanho 
(e presta tanta atenção) 
que se afoga na mesma onda (onda de transmissão) 
se mata com a mesma arma 
e obedece sem reação 
E eu vou fazer esta trinca, que assim faço mais pontos 
Se eu desse o 7 você bem que ficava contente 
Mas que máquina, que matemática, que temática 
é essa, o que foi que fizeram com a gente? 
Porque será que aquele homem quis matar o presidente
(que presidente?) Presidente de quê? se neste país 
somos todos adultos. Foi isso que fizeram com a gente 
Adelaide, somos todos adultos… 
Bateu, mas logo agora 
que eu comprei toda essa mesa… 
Acende a luz. Fecha a cortina 
que esse cinza me dá tristeza 
e que tá tão frio aqui. 
Vamos contar os pontos 
Acabou. 
Adelaide. Perdi. 

Bruna Lombardi, Poesia Reunida