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Mario Faustino

Mario Faustino

Mario Faustino – Viagem

mario faustino

Apago a vela, enfuno as velas: planto
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto
E ardendo em festas fogo-embalsamadas
Amo em tropel, corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalos e símbolos, harmônio
Onde executo a flor que em mim se embebe,
Centro e cetro, curvando-se ante a sebe
Divina — a própria morte hoje defloro
E vida eterna engendro: gero, adoro.

Mario Faustino, O homem e sua hora

Mario Faustino

Mário Faustino – Vida Toda Linguagem

mario faustino

Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.

Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjectivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará — oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sémen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem —
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra
a chuva,
tenta fazê-la eterna — como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.

Mário Faustino, Antologia Poética

Mario Faustino

Mário Faustino – Não quero amar o braço descarnado

mario faustino

Não quero amar o braço descarnado
Que se oculta em meu braço, nem o peito
Silente que se instala no meu lado,
Onde pulsa de horror um ser desfeito
Na presente visão de seu passado
Em futuro sem tempo contrafeito,
Em tempo sem compasso transmudado.
O morto que em mim jaz aqui rejeito.
Quero entregar-me ao vivo que hoje sua
De medo de perder-me em pleno leito
Rubro de vida e morte em que me deito
A luz de ardente e grave e cheia lua.
Ao que, se a Morte chama ao longe: Mário!,
Me abraça estremecendo em meu sudário.

Mário Faustino, O homem e sua hora

Mario Faustino

Mário Faustino – Prefácio

mario faustino

Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrases do touro,
As traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manha fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.

Mário Faustino, O homem e sua hora

Mario Faustino

Mário Faustino – Soneto antigo

mario faustino

E quando a luz e o vento me deixaram,
Negro e silente, fulcro do horizonte,
Mil vezes me acordei, e mais dormiam
Em mim, tão mais dormentes, que arrancar
Do derradeiro a máscara foi duro;
Vi-me entretanto, hirsuto e nu, presente;
E aprendi mais, naquele frio estar
Ali, que entre os doutores e os ladrões;
E muito que antes dava como oposto,
Imigo, adverso, carne e estrela, vi
Amar-se e penetrar-se, fogo e mar
Gerando esta cidade palpitante,
Feita de sangue e flama e grito, um só
Candente ser humano que me chama.

Mário Faustino, O homem e sua hora

Mario Faustino

Mário Faustino – Alma que foste minha

mario faustino

Alma que foste minha,
desprendida de meu corpo e de meu espírito,
leque de palma sem raízes, sem tormentas,
que gênero esta noite te distingue,
que metro te organiza, por que dogmas,
que signos te orientam – rumo a quê?

  • Mestre, qual é o sexo das almas?

Desmarcada e sem cordas
alma que foste minha
sem cravos e sem espinhos
que trigo milenar te mata a fome
divina
que pirâmide encerra tua essência
nudíssima
que corpo te defende de ti mesma
do espaço
que idade, quantas eras, contra o tempo
alma anárquica
desmarcada e sem cravos
sem precisão de estar
ou de ficar
– Que te vale Bizâncio?
ou de mudar
ou de fazer, ou de ostentar
– Que te vale este verso?
apoética, absurda
como chamar-te alma, de quê, quando,
para quê, alma de morto, para onde?

Mário Faustino, O homem e sua hora e outros poemas

Mario Faustino

Mário Faustino – Soneto antigo

mario faustino

Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.

Mário Faustino, O Homem e Sua Hora

Mario Faustino

Mário Faustino – Balada

mario faustino

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o fato
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mais intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura),

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirma-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra só um delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
De fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares – tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Mário Faustino, Poesia completa e traduzida

Mario Faustino

Mário Faustino – Carpe Diem

mario faustino

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre.
Já nele a luz da lua — a morte — mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)

Mário Faustino, Esparsos e inéditos

Mario Faustino

Mário Faustino – Noturno

mario faustino

Nem uma só verdade resplandece
Neste verão sonhado por abutres.
O ano inteiro, o outro ano, e o outro,
Mentidos pela mímica de um bufo,
Contam falsas proezas de funâmbulo.
E os saltos já não podem mais traçar
O mito que exercemos, a parábola.

Alardes, fugas, flâmulas. Palmeiras
Partilhando o resgate da beleza
Das nuvens criadoras de uma estrela,
De nada mais que uma. O saltimbanco,
Mirando-se nas poças, rejubila.
E ressoa na flauta de anteontem
O repouso de um pântano…

Quanto foste traído! O luar torto
Raiva no campo aberto onde esta noite
Um profeta estremece no seu túmulo.

Mário Faustino, O homem e sua hora

Mario Faustino

Mário Faustino – Balatetta

mario faustino

Por não ter esperança de beijá-lo
Eu mesmo, ou de abraçá-lo,
Ou contar-lhe do amor que me corrói
O coração vassalo,
Vai tu, poema, ao meu
Amado, vai ao seu
Quarto dizer-lhe quanto, quanto dói
Amar sem ser amado,
Amar calado.

Beijai-o vós, felizes
Palavras que levíssimas envio
Rumo aos quentes países
De seu corpo dormente, rumo ao frio
Vale onde vaga a alma
Liberta que na calma
Da noite vai sonhando, indiferente
À fonte que, de ardente,
Gera em meu rosto um rio
Resplandescente.

No sonolento ramo
Pousai, palavras minhas, e cantai
Repetindo: eu te amo.
Ele, que dorme, e vai
De reino em reino cavalgando sua
Beleza sob a lua,
Encontrará na voz de vosso canto
Motivo de acalanto;
E dormirá mais longe ainda, enquanto
Eu, carregando só, por esta rua
Difícil, meu pesado
Coração recusado,
Verei, nesse seu sono renovado,
Razão de desencanto
E de mais pranto.

Entretanto cantai, palavras: quem
Vos disse que chorásseis, vós também?

Mário Faustino, O homem e sua hora

Mario Faustino

Mario Faustino – Soneto

mario faustino

Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.

 

Mario Faustino, O homem e sua hora e outros poemas

Mario Faustino

Mario Faustino – Mensagem

mario faustino

Em marcha, heróico, alado pé de verso,
busca-me o gral onde sangrei meus deuses:
conta às suas relíquias, ontem de ouro,
hoje de obscura cinza, pó de tempo,
que ele os venera ainda, o jogral verde
que outrora celebrou seus milagres fecundos.

Dize a eles que vinham
tecer silentes minha eternidade
que a lava antiga é pura cal agora
e queima-lhes incenso, e rouba-me farrapos
de seus mantos desertos de oferendas
onde possa chorar meu disfarce ferido.

Dize a eles que tombam
como chuvas de sêmen sobre campos de sal
sem mancha, mas terríveis
que desçam sobre a urna deste olvido
e engendrem rosas rubras
do estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho.
Segue, elegia, busca-me nos portos
e nas praias de Antanho, e nas rochas de Algures
os deuses que afoguei no mar absurdo
de um casto sacrifício.
Apanha estas palavras do chão túmido
onde as deixo cair, findo o dilúvio:
forma delas um palco, um absoluto
onde possa dançar de novo, nu
contra o peso do mundo e a pureza dos anjos,
até que a lucidez venha construir
um templo justo, exato, onde cantemos.

 

Mario Faustino, O homem e sua hora

Mario Faustino

Mário Faustino – Divisamos assim o adolescente

mario faustino

Divisamos assim o adolescente, 
A rir, desnudo, em praias impolutas. 
Amado por um fauno sem presente 
E sem passado, eternas prostitutas 
Velam por seu sono. Assim, pendente 
O rosto sobre um ombro, pelas grutas 
Do tempo o contemplamos, refulgente 
Segredo de uma concha sem volutas. 
Infância e madureza o cortejavam, 
Velhice vigilante o protegia. 
E loucos e ladrões acalentavam 
Seu sonho suave, até que um deus fendia 
O céu, buscando arrebata-lo, enquanto 
Durasse ainda aquele breve encanto. 

 

Mário Faustino, O Homem e sua Hora e outros poemas

Mario Faustino

Mário Faustino – O mundo que venci deu-me um amor

mario faustino

O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória…

 

Mário Faustino, O Homem e sua hora e Outros poemas