O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma. Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. Espaço vazio, em suma. O resto, é a matéria. Daí, que este arrepio, este chamá lo e tê lo, erguê lo e defrontá lo, esta fresta de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo António Gedeão, Obra completa
Categoria: António Gedeão
António Gedeão – Poemas das flores
Se com flores se fizeram revoluções que linda revolução daria este canteiro! Quando o clarim do Sol toca a matinas ei-las que emergem do noturno sono e as brandas, tenras hastes se perfilam. Estão fardadas de verde clorofila, botões vermelhos, faixas amarelas, penachos brancos que se balanceiam em mesuras que a aragem determina É do …
António Gedeão – Lágrima de preta
Encontrei uma preta Que estava a chorar, Pedi-lhe uma lágrima Para a analisar. Recolhi a lágrima Com todo o cuidado Num tubo de ensaio Bem esterilizado. Olhei-a de um lado, Do outro e de frente: Tinha um ar de gota Muito transparente. Mandei vir os ácidos, As bases, os sais, As drogas usadas Em casos …
António Gedeão – Poema do adeus
Exigem novas leis que os olhos não se alegrem quando as folhas das árvores lhes acenam; quando o lagarto ao Sol o erótico pescoço, erecto e circulante como um radar, transforma as ondas mansas em lúbricas tensões. Não mais murmúrios de águas nem aromas de pinhos que os ouvidos antigos recolhiam e os narizes hauriam …
António Gedeão – Fala do homem nascido
Venho da terra assombrada, do ventre de minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém. Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci. Trago boca para comer e olhos para desejar. Com licença, quero passar, tenho pressa de …
António Gedeão – Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de …
António Gedeão – Calçada de Carriche
Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Luísa …
António Gedeão – Poema da malta das naus
Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro medi a altura do Sol. Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo, pelote de vagabundo, rebotalho de gibão. Dormi no dorso das vagas, pasmei na orla das praias, arreneguei, roguei pragas, mordi peloiros e zagaias. Chamusquei o pêlo …
António Gedeão – Dia de natal
Hoje é dia de ser bom. É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, de falar e de ouvir com mavioso tom, de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças. É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem, de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a …