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Cecília Meireles

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Descrição

cecilia meireles

Amanheceu pela terra
um vento de estranha sombra,
que a tudo declarou guerra.

Paredes ficaram tortas,
animais enlouqueceram
e as plantas caíram mortas.

O pálido mar tão branco
levantava e desfazia
um verde-lívido flanco.

E pelo céu, tresmalhadas,
iam nuvens sem destino,
em fantásticas brigadas.

Dos linhos claros da areia
fez o vento retorcidas,
rotas, miseráveis teias.

Que sopro de ondas estranhas!
Que sopro nos cemitérios!
Pelos campos e montanhas!
Que sopro forte e profundo!
Que sopro de acabamento!
Que sopro de fim de mundo!

Da varanda do colégio,
do pátio do sanatório,
miravam tal sortilégio

olhos quietos de meninos,
com esperanças humanas
e com terrores divinos.

A tardinha serenada
foi dormindo, foi dormindo,
despedaçada e calada.

Só numa ruiva amendoeira
uma cigarra de bronze,
por brio de cantadeira,

girava em esquecimento
à sanha enorme do vento,
forjando o seu movimento
num grave cântico lento…

Cecilia Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Como se morre de velhice

cecilia meireles

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles, Poemas

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Onde estão as violetas?

cecilia meireles

Onde estão as violetas?
Na mão de etéreos meninos
Que enterram flores na areia,
Na areia consecutiva.
Túmulos de beija-flores
São essas vagas colinas
Sem consistência nenhuma
Sob as mãos inconsistentes
Que vão plantando violetas,
Violetas consecutivas.
Mudam de cor as violetas,
Vão sendo róseas e brancas,
E irão desaparecendo
Por ilusórios caminhos
Como, sem rosto, os meninos,
Meninos consecutivos.
Em tempos consecutivos
Quem pode ver esse mundo
Só de meninos, areias,
Túmulos de beija-flores
E sombras de violetas?

Cecília Meireles, Palavras e pétalas

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Pequena canção da onda

cecilia meireles

Os peixes de prata ficaram perdidos,
com as velas e os remos, no meio do mar.
A areia chamava, de longe, de longe,
ouvia-se a areia chamar e chorar!

A areia tem rosto de música
e o resto é tudo luar!

Por ventos contrários, em noite sem luzes,
do meio do oceano deixei-me rolar!
Meu corpo sonhava com a areia, com a areia,
desprendi-me do mundo do mar!

Mas o vento deu na areia.
A areia é de desmanchar.
Morro por seguir meu sonho,
longe do reino do mar!

Cecília Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Realização da vida

cecilia meireles
Início » Cecília Meireles

Não me peças que cante,
pois ando longe,
pois ando agora
muito esquecida.

Vou mirando no bosque
o arroio claro
e a provisória
flor escondida.

E procuro minha alma
e o corpo, mesmo,
e a voz outrora
em mim sentida.

E me vejo somente
pequena sombra
sem tempo e nome,
nisto perdida,

– nisto que se buscara
pelas estrelas,
com febre e lágrimas,
e que era a vida.

Cecília Meireles, Obra poética

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Canção excêntrica

cecilia meireles

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
– Saudosa do que não faço,
– Do que faço, arrependida.

Cecília Meireles, Obra poética

Cecília Meireles

Cecília Meireles – O rei do mar

cecilia meireles

Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar…
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar…

Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar…)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.


Cecília Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Não te fies do tempo nem da eternidade

cecilia meireles

Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo.
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto!

Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo…
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te digo…

Cecília Meireles, Retrato natural

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Canção quase inquieta

cecilia meireles

De um lado, a eterna estrela,
e do outro a vaga incerta,

meu pé dançando pela
extremidade da espuma,
e meu cabelo por uma
planície de luz deserta.

Sempre assim:
de um lado, estandartes do vento…
– do outro, sepulcros fechados.
E eu me partindo, dentro de mim,
para estar no mesmo momento
de ambos os lados.

Se existe a tua Figura,
se és o Sentido do Mundo,
deixo-me, fujo por ti,
nunca mais quero ser minha!

(Mas, neste espelho, no fundo
desta fria luz marinha,
como dois baços peixes,
nadam meus olhos à minha procura…
Ando contigo – e sozinha.
Vivo longe – e acham-me aqui…)

Fazedor da minha vida,
não me deixes!
Entende a minha canção!
Tem pena do meu murmúrio,
reúne-me em tua mão!

Que eu sou gota de mercúrio,
dividida,
desmanchada pelo chão…

Cecília Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Neste longo exercício de alma

cecilia meireles

Neste longo exercício de alma…
Ciência, amor, sabedoria,
– tudo jaz muito longe, sempre…
(Imensamente fora do nosso alcance!)
Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
– cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.
Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram,
no espelho do silêncio refletidos,
neste longo exercício de alma.

Cecília Meireles, Poesia completa

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Aceitação

cecilia meireles

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

Cecilia Meireles, Melhores Poemas, Seleção e prefácio André Seffrin

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Epigrama nº 1

cecilia meireles

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:
flor do espírito, desinteressada e efêmera.

Por ela, os homens te conhecerão:
por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,
quando por ele andou teu coração.

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Herança

cecilia meireles

Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.
Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?
E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou premio, alcançarão?

Cecília Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Música

cecilia meireles

Noite perdida,
não te lamento:
embarco a vida

no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,

puro e sem nada,
– rosa encarnada,
intacta, ao vento.

Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,

e ressuscitada…
(Asa da lua
quase parada,

mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua

a minha vida
num chão profundo!
– raiz prendida

a um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,

muda alvorada
que o pensamento
deixa confiada

ao tempo lento…
Minha partida,
minha chegada,

é tudo vento…

Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada…

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Se eu fosse apenas

cecilia meireles

Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
— de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa…

Cecília Meireles, 366 Poemas que falam de amor – Organização Vasco Graça Moura