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Cecília Meireles

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Se eu fosse apenas

cecilia meireles

Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
— de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa…

Cecília Meireles, 366 Poemas que falam de amor – Organização Vasco Graça Moura

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – De que são feitos os dias?

cecilia meireles

De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…

Cecilia Meireles, Canções

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Rosa do deserto

cecilia meireles

Eu vi a rosa do deserto
ainda de estrela orvalhada:
era a alvorada.

Por mais que parecesse perto,
não vinha daqueles lugares
de céus e mares.

Os aéreos muros do dia
punham diamantes na paisagem:
clara miragem.

E a voz dos Profetas batia
contra imensas portas de vento
seu chamamento.

Reis-Touros e deusas-hienas
brandiam seus perfis de outrora
à ardente aurora.

Trágicas e divinas cenas
ali jaziam soterradas,
sem madrugadas.

Eu vi a rosa do deserto:
a exata rosa, a ígnea medida
da humana vida.

Eu vi o mundo recoberto
pela manhã da claridade
da incandescente eternidade.

Cecilia Meireles, Poemas escritos na Índia

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Pergunta

cecilia meireles

Estes meus tristes pensamentos
vieram de estrelas desfolhadas
pela boca brusca dos ventos?

Nasceram das encruzilhadas,
onde os espíritos defuntos
põem no presente horas passadas?

Originaram-se de assuntos
pelo raciocínio dispersos,
e depois na saudade juntos?

Subiram de mundos submersos
em mares, túmulos ou almas,
em música, em mármore, em versos?

Cairiam das noites calmas,
dos caminhos dos luares lisos,
em que o sono abre mansas palmas?

Provêm de fatos indecisos,
acontecidos entre brumas,
na era de extintos paraísos?

Ou de algum cenário de espumas,
onde as almas deslizam frias,
sem aspirações mais nenhumas?

Ou de ardentes e inúteis dias,
com figuras alucinadas
por desejos e covardias?…

Foram as estátuas paradas
em roda da água do jardim…?
Foram as luzes apagadas?

Ou serão feitos só de mim,
estes meus tristes pensamentos
que boiam como peixes lentos

num rio de tédio sem fim?

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – A arte de ser feliz

cecilia meireles

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não
morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de
seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecilia Meireles, Escolha seu sonho

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Timidez

cecilia meireles

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…

– mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes…

– palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

– que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando…

– e um dia me acabarei.

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Para ir à lua

cecilia meireles

Enquanto não têm foguetes
para ir à Lua
os meninos deslizam de patinete
pelas calçadas da rua.

Vão cegos de velocidade:
mesmo que quebrem o nariz,
que grande felicidade!
Ser veloz é ser feliz.

Ah! se pudessem ser anjos
de longas asas!
Mas são apenas marmanjos.

Cecilia Meireles, Ou isto ou aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – I (um)

cecilia meireles

O rumor do mundo vai perdendo a força,
e os rostos e as falas são falsos e avulsos.
O tempo versátil foge por esquinas
de vidro, de seda, de abraços difusos.

A lua que chega traz outros convites:
inclina em meus olhos o celeste mapa,
desmorona os punhos crispados do dia,
desenha caminhos, transparente e abstrata.

Árvores da noite… Pensamento amante…
– Transporta-me a sombra, na altura profunda,
aos campos felizes onde se desprende
o diurno limite de cada criatura.

É a noite sem elos… Inocência eterna,
isenta de mortes e natividades,
pura e solitária, deslembrada, alheia,
mudamente aberta para extremas viagens.

Eu mesma não vejo quem sou, na alta noite,
nem creio que SEJA: perduro em memória,
à mercê dos ventos, das brumas nascidas
nos dormentes lagos que ao luar se evaporam.

Recebo teu nome também repartido,
quebrado nos diques, levado nas flores…
Quem sabe teu nome, – tão longe, tão tarde,
tão fora do tempo, do reino dos homens…?

Cecilia Meireles, Doze noturnos da Holanda

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Anunciação

cecilia meireles

Toca essa música de seda, frouxa e trêmula,
que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.

Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento.

E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.

Toca essa música de seda, entre areias e nuvens e espumas.

Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos;
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa.

Cessará essa música de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.

E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cinco

cecilia meireles

Como um pastor apascento
minhas distâncias.
Mas logo me recupero,
para viver entre os vivos,
que estão cativos.

Meu corpo de esquecimento
mede as torres de abundância,
livres e abertas,
dos seus antigos despojos.
Que hei de fazer do que tinha,
ó sombra minha?

Nem feliz nem desgraçado,
pouso por fatalidade,
e ainda respondo,
embora saiba que é longe
para sempre quanto digo
ao mundo antigo.

E tudo que me respondem
fica também noutras eras,
vem de outra idade.
Pastor que contempla ocasos,
eu mesmo sou o meu caminho,
claro e sozinho.

Cecilia Meireles, O aeronauta

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Quatro

cecilia meireles

Agora chego e estremeço.
E olho e pergunto.
E estranho o aroma da terra,
as cores fortes do mundo
e a face humana.

Compreendo, entre o que me espera,
violências que reconheço
mas que não sinto.
Sem paixões e sem desprezo,
gasto-me todo em lembranças,
neste tumulto.

Porque chego despojado
e humilho-me de ter vindo
como estrangeiro;
– de ser apenas um vulto
que tudo que sabe é de alma,
– ao resto, alheio.

As portas dos meus armários,
que guardam dentro? Esqueci-me.
De que me servem?
Por mais que tudo examine,
vejo bem que já não tenho
laços e heranças.

Perdoai-me chegar tão leve,
eu, passageiro
dos céus, de límpido vento.

Cecilia Meireles, O aeronauta

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Três

cecilia meireles

Eu vi as altas montanhas
ficarem planas.
E o mar não ter movimento
e as cidades irem sendo
teias de aranha.

Por mais que houvesse, dos homens,
gritos de amor ou de fome,
não se escutava
nem a expressão nem o grito,
– que tudo fica perdido
quando se passa.

Eu vi meus sonhos antigos
não terem nenhum sentido,
e recordava
tantas nações de cativos
estendendo em seus jazigos
duras garras.

Rios de pranto e de sangue
que pareceram tão grandes,
onde é que estavam?
A asa, que longe se move,
desprende-se, quando sobe,
da humana larva.

Cecilia Meireles, O aeronauta

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Dois

cecilia meireles

Daquele que antes ouvistes,
vede o que volta:
alguém que pisa no mundo
tonto em seu grande tumulto
de concha morta.
Que rostos incompreensíveis,
que sepultadas palavras
aqui me esperam?
Não sei dos vossos motivos.
Eu caminhava nas nuvens,
além da terra.
Na minha fluida memória,
meu tempo não sabe de hora.
Apenas sabe
de grandes campos sem teto.
Nos céus tão vastos e abertos,
que é porta ou chave?
Que corredores me apertam?
De que paredes me cerca
vossa hospedagem?
Que existe por estas salas?
Meu nome agora é diverso.
Indeclinável.

 

Cecilia Meireles, O aeronauta

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Um

cecília meireles

Agora podeis tratar-me
como quiserdes:
não sou feliz nem sou triste,
humilde nem orgulhoso,
– não sou terrestre.

Agora sei que este corpo,
insuficiente, em que assiste
remota fala,
mui docemente se perde
nos ares, como o segredo
que a vida exala.

E seu destino é ir mais longe,
tão longe, enfim, como a exata
alma, por onde
se pode ser livre e isento,
sem atos além do sonho,
dono de nada,

mas sem desejo e sem medo,
e entre os acontecimentos
tão sossegado!
Agora podeis mirar-me
enquanto eu próprio me aguardo,
pois volto e chego,

por muito que surpreendido
com os seus encontros na terra
seja o Aeronauta.

 

Cecilia Meireles, O aeronauta

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Mar absoluto

cecília meireles

Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.

Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.

E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
e pelos mares do Norte, duros de gelo.

Então, é comigo que falam,
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes redes de rezas,
campos convertidos em velas,
barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros
e cantos náuticos.

E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
“Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! – Disciplina humana para a empresa da vida!”
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona,
parece-mos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.

Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todos, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado,
cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.

E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

Cecília Meireles, Mar absoluto