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David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Minuto

David Mourão-Ferreira

O amor? Seria o fruto
trincado até mais não ser?
(Mas para lá do prazer
a Vida estava de luto…)

Fui plantar o coração
no infinito: uma flor…
(Mas para lá do fervor
a Vida gritou que não!)

O amor? Nem flor nem fruto.
(Tudo quanto em nós vibrara
parecia pronto a ceder…)

Foi apenas um minuto:
a fome intensa, tão rara!,
de ser criança, ou morrer…

David Mourão-Ferreira, Obra poética

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Silêncio

David Mourão-Ferreira

Já o silêncio não é de oiro: é de cristal;
redoma de cristal este silêncio imposto.
Que lívido museu! Velado, sepulcral.
Ai de quem se atrever a mostrar bem o rosto!

Um hálito de medo embaciando o vidrado
dá-nos um estranho ar de fantasmas ou fetos.
Na silente armadura, e sobre si fechado,
ninguém sonha sequer sonhar sonhos completos.

Tão mal consegue o luar insinuar-se em nós
que a própria voz do mar segue o risco de um disco…
Não cessa de tocar; não cessa a sua voz.
Mas já ninguém pretende exp’rimentar-lhe o risco!

David Mourão-Ferreira, Tempestade de Verão

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Paisagem

David Mourão-Ferreira

Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.

Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.

Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.

E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»

Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.

(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)


David Mourão-Ferreira, Obra Poética [1948-1995]

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Adiamento

David Mourão-Ferreira

Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos a coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar da viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência…
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.

David Mourão-Ferreira, Obra Poética [1948-1995]

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Ternura

David Mourão-Ferreira

Desvio dos teus ombros o lençol,
Que é feito de ternura amarrotada,
Da frescura que vem depois do sol,
Quando depois do sol não vem mais nada…

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
Como vultos perdidos na cidade
Onde uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
E é ternura também que vou vestindo,
Para enfrentar lá fora aquela gente

Que da nossa ternura anda sorrindo…
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
A despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira, Cinco séculos de sonetos portugueses

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Prelúdio de natal

David Mourão-Ferreira

Tudo principiava
pela cúmplice neblina
que vinha perfumada
de lenha e tangerinas

Só depois se rasgava
a primeira cortina
E dispersa e dourada
no palco das vitrinas

a festa começava
entre odor a resina
e gosto a noz-moscada
e vozes femininas

A cidade ficava
sob a luz vespertina
pelas montras cercada
de paisagens alpinas.

David Mourão-Ferreira, Antologia Poética

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Voto de natal

David Mourão-Ferreira

Acenda-se de novo o Presépio no Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida…
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios?
Acende-se de novo o Presépio nas almas.
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.

 

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Poesia de amor

David Mourão-Ferreira

Vieram as aves negras em teu nome,
Secas folhas de plátano e de tília…
Amargamente, a fonte segredou-me
Tudo quanto eu sabia
Da sorte de Marília;
E que Dirceu
Poderei ser eu
– Tão infeliz! – nesta prisão sombria.

Ausente embora, continuo
A endereçar-te mil endechas.
Não sei mais nada: sei amor. Assim destruiu,
Pela canção doentia
Coloração das minhas queixas.
Bárbara escrava?
Que me importava?
Além do amor, o meu amor quer melodia.

Cantei às flores do pinho, verde e vivo;
Cantei nas margens verdes das ribeiras.
– Quando hás-de ver que foste só motivo
Para falsas canções tão verdadeiras?

 

David Mourão-Ferreira, Tempestade de verão

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Soneto do cativo

David Mourão-Ferreira

Se é sem dúvida Amor esta explosão
De tantas sensações contraditórias;
A sórdida mistura das memórias,
Tão longe da verdade e da invenção;

O espelho deformante; a profusão
De frases insensatas, incensórias;
A cúmplice partilha nas histórias
Do que os outros dirão ou não dirão;

Se é sem dúvida Amor a cobardia
De buscar nos lençóis a mais sombria
Razão de encantamento e de desprezo;

Não há dúvida, Amor, que te não fujo
E que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
Tenho vivido eternamente preso!

 

David Mourão-Ferreira, Cincos séculos de sonetos Portugueses

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Última face

David Mourão-Ferreira

A Noite já não é aquela estrada,
Com uma inquietação em cada muro.
Rosto lunar, vulgar fruto maduro,
A tua face branca e transtornada,

De tão distante e fria, não é nada…
(Mas ilumina as faces que eu procuro…)
Contudo, sei que há-de tombar do escuro
A face apetecida e desejada!

É de mulher? Será… E traz um véu
Que vela, em sonho, tudo que perdeu
A minha adolescência já perdida…

Ah! não lhe peças nada, carne ansiosa!
Que ao menos seja essa velada rosa
Casta! – como não foi a tua vida.

 

David Mourão-Ferreira, Cinco séculos de sonetos Portugueses

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Ladainha dos póstumos natais

David Mourão-Ferreira

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que se veja à mesa o meu lugar vazio 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que só uma voz me evoque a sós consigo 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que não viva já ninguém meu conhecido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem vivo esteja um verso deste livro 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que terei de novo o Nada a sós comigo 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem o Natal terá qualquer sentido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que o Nada retome a cor do Infinito 

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal

David Mourão-Ferreira

David Mourão-Ferreira – Natal, e não Dezembro

David Mourão-Ferreira

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal