Navegando pela Categoria

Lya Luft

Lya Luft

Lya Luft – Canção da palavra secreta

lya luft

Que mão se enfia entre minhas raízes,
que paixão me esventra o coração?
Abro caminho na liberdade de uma folha,
e escrevo lentamente a palavra secreta.

E ela,
preguiçosamente, abre-me os braços
esquiva donzela ou feio palhaço.
Uma palavra apenas, no mistério maior
de uma página intacta, ou no emaranhado dos traços:
o nome que não posso pronunciar sem medo,
enquanto invento outros, que resumem
a verdade da vida na mentira que assino.

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Sobrevida

lya luft

Quando foi bom o amor,
os mortos pedem
memórias doces
que não os perturbem,
e que a gente viva
sem muito desgosto:
mais nada.
Pedem silêncio
e que os deixemos
em paz.
Os mortos
precisam de mais espaço
do que em vida:
nesse seu novo posto
não devem olhar
para trás.
(Os mortos querem licença
para morrer mais.)

Lya Luft, Para não dizer adeus

Lya Luft

Lya Luft – Todas as águas

lya luft

Quando pensei que estava tudo cumprido,
havia outra surpresa: mais uma curva
do rio, mais riso e mais pranto.
Quando calculei que tudo estava pago,
anunciaram-se novas dívidas e juros,
o amor e o desafio.
Quando achei que estava serena,
os caminhos se espalmaram
como dedos de espanto
em cortinas aflitas. E eu espio,
ainda que o olhar seja grande
e a fresta pequena.

Lya Luft, Para não dizer adeus

Lya Luft

Lya Luft – Temporal

lya luft

O tempo rasteja no telhado
depois de se fazerem filhos e dívidas,
e as dúvidas brotarem nas frestas
da porta.

O tempo trança bordados no rosto
e manchas na mão,
mas a gente não muda: ainda chove
no escuro e um pássaro começa a cantar,
um amigo morre antes dos quarenta anos,
e nossa mãe, com quase cem, nem está
nem se ausenta.

Como tudo o mais,
o tempo não tem explicação:
corrói e transfigura, expande
ou empobrece, conforme a escolha
de cada um.

(Eu, com medo e susto,
escolho a multiplicação.)

Lya Luft, Para não dizer adeus

Lya Luft

Lya Luft – Perder, ganhar

lya luft

Com as perdas, só há um jeito:
perdê-las.
Com os ganhos,
o proveito é saborear cada um
como uma fruta boa da estação.
A vida, como um pensamento,
corre à frente dos relógios.
O ritmo das águas indica o roteiro
e me oferece um papel:
abrir o coração como uma vela
ao vento, ou pagar sempre a conta
já vencida.

Lya Luft, Para não dizer adeus

Lya Luft

Lya Luft – Dizendo adeus

lya luft

Estou sempre dando adeus:
também ao desencontro e ao
desencanto.
Estou sempre me despedindo
do ponto de partida que me lança de si,
do porto de chegada que nunca é
aqui.
Estou sempre dizendo adeus:
até a Deus,
para o reencontrar em outra esquina
de adeuses.
Estarei sempre de partida,
até o momento de sermos deuses:
quando me fizeres dar adeus à solidão
e à sombra.

Lya Luft, Para não dizer adeus

Lya Luft

Lya Luft – Quando ele morreu

lya luft

Quando ele morreu,
não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
“Não acredito, não acredito.”
Beijei sua mão ainda morna,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.

Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade.

Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
como um menino que apenas dorme.

Lya Luft, O lado fatal

Lya Luft

Lya Luft – Terceira canção dos filhos

lya luft

Eduardo:

O terceiro anjo espia entre meus galhos,
meu corpo feito árvore, madeira de barco.
Anjo esperado, logo um homem,
dramaticamente um homem, mas meu filho.

Meu corpo é teu chão, meu sangue é teu pasto,
teu olho escuro me interroga como se soubesses
muito mais coisas do que eu.
Não tenho respostas: tenho, como tu,
estranheza e perguntas, cumplicidade
e incerteza, vontade de proteger, e assombro
de pensar que o teu destino inteiro
já está nesta mão pequena
que aperta os meus dedos
como se, em vez de pedir apoio,
tu é que me conduzisses
— enxergando mais longe do que eu.

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Canção da mirada secreta

lya luft

Foram-se os amores que tive
ou me tiveram. Partiram
num cortejo iluminado.
A solidão me ensina
a não acreditar na morte,
nem demais na vida: cultivo
o jardim dos dias felizes
onde estamos eu, os sonhos idos,
os velhos amores e os seus recados,
e os olhos deles que ainda brilham
como pedrinhas de cor
entre as raízes.

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Canção da vez primeira

lya luft

Guardei-me para ti como um segredo
que eu mesma não desvendei:
há notas na minha viola
que não toquei,
há praias na minha vida
que não andei.

É preciso que me tomes
além do riso e do olhar
naquilo que não conheço
e adivinhei;
é preciso que me cantes
a canção do que serei
e me cries com teu gesto
que nem sonhei.

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Segunda Canção dos filhos

lya luft

André:

Dorme filho meu, que eu te contemplo.
Dorme fragilidade que assusta,
espelho onde me revejo,
corpo feito da minha carne obscura
com os olhos azuis da minha infância,
caminho dos teus próprios passos
para longe dos meus.

Dorme filho meu,
vaso onde tantas vidas convergiram,
centro da minha ternura, assombro
de pressentir a tua liberdade
num círculo tão maior do que os meus braços.
Dorme e inventa o teu futuro
enquanto eu vou me transformando
em teu passado.

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Canção do amor sereno

lya luft

Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua, e permitiram
Que o mel de teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Primeira canção dos filhos

lya luft

Susana:

Pareces tão minha,
pérola destas carnes secretas
agora emersa, agora rosto
que vai adquirindo seus traços,
pequena magnólia brotando
no galho do meu amor.
Vens tão entregue, e sei que não és minha:
és do teu futuro que eu não alcançarei inteiro.
Presa no meu abraço eu te sinto voar,
voar com esses pássaros de maio,
num céu de luz e de incertezas sobre nós.

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Canção do enfermo

lya luft

Um gelo o envolveu, e ele,
antes tranquilo e bom, agora
é mais um filho que apela
para cuidados essenciais.
Sei que se foi, que paira
num limbo entre a vida e a noite:
mas às vezes o seu verde olhar
— que me iluminava tanto —
repousa em mim, e é como
se me desse recados do seu mundo.

Mesmo se beijo a sua boca inerte,
pego a sua mão tão magra,
digo seu nome pronunciado
em tantos anos,
ele apenas me olha, por um lapso
de segundo devolvido
a mim, outra vez me vendo,
quem sabe ainda uma vez
comigo.

Mas o anjo da morte,
que já encosta
nele a sua asa bela e fria,
novamente o recolhe nesse espaço
onde se afasta de mim sem viajar direito,
onde se vai sem se afastar de todo,
vacilando entre o nosso indagar
e as respostas que ele já percebe
do outro lado.

 

Lya Luft, Secreta mirada

Lya Luft

Lya Luft – Canção do recomeço

lya luft

A casa aonde voltei
depois de muitos anos,
boia como uma ilha de aguapés na noite,
presa por uma raiz doce e dolorosa
que me define.

Na madrugada caminho pelos quartos
como no fundo do mar
onde essa raiz se finca.
Pelas vidraças, o jardim são algas;
meus filhos dormem como quando
eram meninos,
e suas respirações, como sentimentos,
fundem-se neste bojo.

Este é o meu lugar
aonde voltei depois de tanto tempo,
como quem, misturando peças
dos enigmas mais arcaicos,
montasse laboriosamente o seu quebra-cabeça.

 

Lya Luft, Secreta mirada