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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – Torre de babel

Menotti Del Picchia

Eles ergueram a torre de Babel
bem na Praça Antônio Prado.
O esqueleto de aço cobriu-se de carne de cimento
e as vigas e guindastes
eram braços agarrando estrelas
para industrializá-las em anúncios comerciais.

Italianos joviais,
húngaros de olhos de leopardo,
caboclos de Tietê arrastando o caipira.

bolchevistas da Ucrânia,
polacos de Wrangel,
nipões jaldes como gnomos nanicos talhados em âmbar

entre as pragas dos contramestres,
os rangidos das tábuas do andaime,
o estridor metálico
das vigas de aço e dos martelos sonoros,
no céu libérrimo de S. Paulo,
fizeram a confusão das línguas,
sem perturbar a geometria rigorosa
do ciclópico arranha-céu!

Lá do alto, o paulista,
bandeirante das nuvens,
mirou o prodígio da Cidade alucinada:
uma casa de três andares
pôs-se a crescer bruscamente
como nos romances de Wells;
outra apontou a cabeça arrepelada de caibros
acima do viaduto do Chá;
e começou a desabalada carreira
do páreo do azul.
O formidável arranha-céu
com a cabeça nas nuvens
abrigou no seu ventre de concreto
o drama da nova civilização.
Onde estás, meu seráfico Anchieta,
erguendo com o barro de Piratininga,
pelo milagre da tua persuasão,
as paredes rasteiras do Colégio?

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – Pêndulo

Menotti Del Picchia

O dia envelhece.

O cansaço da tarde
estende-o na cama horizontal do crepúsculo.

Dorme.

No escuro silêncio que lhe embala o sono
tem sonhos de estrelas.

Pela manhã o galo o acorda.

Salta do leito reimergido na infância
e brinca de sol na ressurreição matinal de todas as coisas.

E o relógio do Tempo
dia e noite
dia e noite
dia e noite
dia e noite
vai tecendo a eternidade.

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – O rio

Menotti Del Picchia

Como saber se existo
se sou um ser que se escoa?
O tempo me mantém vivo
mas me desfaz hora a hora.

Pobre ânfora trincada
meu perfume se evapora.

Um rio em minhas entranhas
rumo ao nada a vida leva.

Para o implacável curso!

Ó rio do meu sangue, espera!

Não sou minuto a minuto
o que há minutos eu era.

Tento reter a ventura
na trama fluida da hora.

Ó meu sonho, para, espera!

A ventura foi-se embora.

 

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – O discurso

Menotti Del Picchia

Naquele piquenique
o rábula Higino,
sem escovar o fraque,
sem largar o guarda-chuva,
trepou na mesa de caixotes,
derramou com o borzeguim uma garrafa de cerveja,
olhou para cima,
sorveu inebriantes nesgas de céu,
bebeu duas gargalaçadas de sol,
vibrou de brasilidade:
deitou verbo
e rematou:

“Nossa pátria é a maior terra do mundo!
A Europa curvou-se ante o Brasil
e aclamou parabéns em meigo tom!”

Marotti, Calfat e Kochiusko
aplaudiram freneticamente.
Só o Ramirez resmungou alguma coisa,
mas um bando de periquitos
sufocou o protesto com uma assuada.

 

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – Mal du Pays

Menotti Del Picchia

Noites em que as estrelas ficam escutando
coisas que não se dizem a ninguém;
poentes de laca;
manhãs de lisa porcelana;
sobre vós, nas cidades febrentas
ou na orla dos cafezais,
quantas vezes não pousaram as tristezas
das nostalgias internacionais?

Sírios de olhos mouriscos,
lânguidos como beduínos;
húngaros de pupilas de absinto
e jaqueta de veludo;
russos de cabeleiras ruivas
– híspidos casquetes de astracã, –
quantas vezes não pararam bruscamente
ao ouvirem as sereias das fábricas
apitar como navios repatriadores?
Vossas guitarras e sanfonas
choraram nas toadas cosmopolitas
essa angústia indefinível:
mal do país na terra de ouro,
na pátria comum das esperanças ciganas,
confederação das nostalgias,
ímã internacional das aventuras…
É por isso que em teus poentes de laca,
em tuas manhãs de porcelana
ou nas tuas tardes de vitral,
há a beleza suprema de uma torre de cristal
onde todas as saudades juntas
irradiam sua onda
de harmonia e de nostalgia,
para ser colhida nos quatro pontos cardeais
pelas antenas dos corações que inda esperam
aqueles que se foram e que não voltam mais…

 

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – Soneto

Menotti Del Picchia

Soneto! Mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar com uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu…

 

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – Língua Brasileira

Menotti Del Picchia

O povo menino
no seu presepe de palmeiras
aguardou as oferendas de Natal.

A nau primeira
trouxe o Rei do Ocidente
que lhe deu o tesouro sem-par
do Cantar do Amigo,
dos Autos de Gil Vicente
e, depois, a epopeia de Camões.

No navio negreiro
veio o Melchior do mocambo
talhado em azeviche como um ídolo benguela,
com a oferta abracadabrante e gutural
dos monossílabos de cabala.

Nos transatlânticos e cargueiros,
o Rei Cosmopolita,
que tem as cores do arco-íris
e os ritmos de todos os idiomas,
trouxe-lhe o régio presente
das articulações universais.

Os três reis fizeram um acompanhamento das raças
e ensinaram o povo menino
a falar a língua misturada
de Babel e da América.

E assim nasceste,
ágil, acrobática, sonora, rica e fidalga,
ó minha língua brasileira!

 

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – Desilusão

Menotti Del Picchia

E que é amar? A estranha dor
de estilhaçar a alma em carinho…
É colher ao acaso alguma flor
para despetalá-la no caminho.

E que resta depois de tantos ais?

A saudade? Talvez… Ó alma enganada,
de ti e da flor não resta quase nada:
um punhado de pétalas na estrada,
um perfume nos dedos… – Nada mais.

 

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Menotti Del Picchia

Menotti Del Picchia – Fascinação

Menotti Del Picchia

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! tudo ama!

Há amor na alucinada
fascinação do abismo,
amor paradoxal, humano e forte,
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.

Por isso, quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço
atenazando-o para estrangulá-lo!

É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos…
Nesse furor que o invade,
tem a volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento!

É por isso que vês, por tudo
uma luta de morte, um desespero mudo:
a insídia da raiz que mina a terra e a esgota,
o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria dor ignota,
no torturante amor do mais puro e mais alto!

E, na noite estival,
enchendo o Espaço e o Tempo, a Luz e a Treva,
o turbilhão fantástico se eleva
do amor Universal.

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! Tudo ama!…

Juca Mulato freme. Imerge os olhos entre
as estrelas curiosas.

Não sabe que anda o amor nos espaços profundos
a fecundar o ventre
das próprias nebulosas
na eterna gestação de novos mundos…

Ele é a matriz da vida: multiplica
seres e coisas, numa força eterna,
cria o verme, animais que andam de rastros.
Mata e ressurge, estiola e frutifica,
e, pelo espaço rútilo, governa
a prodigiosa rotação dos astros!

E a vertigem do amor, fascinadora,
tudo arrasta, fantástica, nos braços
e a terra que palpita, canta e chora,
ora imersa na treva ora imersa na aurora,
leva através do Tempo e dos Espaços…

Acendendo no olhar um lampejo divino,
Juca Mulato cede à vertigem que o enlaça
e brada num transporte:
“Arrasta-me também, no turbilhão que passa!
Leva-me ao teu destino,
Amor que vens para a Vida e que vais para a Morte!”

 

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