Onde eu nasci há mais terra que céu. Tanto leito é uma bênção para mortos e sonhadores. E de tão pouco ser o céu nasce o Sol em gretas nos nossos pés e os corações se apertam quando remoinhos de poeira se elevam nos telhados. As mães espanam o teto e poeiras de astros cobrem …
Categoria: Mia Couto
Mia Couto – O pecado do rio
Na igreja, Rosarinho se confessou: engravidei do rio, senhor padre. Com gesto de água arredondou o ventre. O padre se enrugou: ela que não usasse desculpa para os seus mortais pecados. A ofensa tremia na voz dela quando retorquiu: — Desculpe, padre, mas Nossa Senhora não emprenhou de um feixe de luz? Para mais, acrescentou …
Mia Couto – Errar
Na escolinha, a menina, propícia a equívocos, disse: — Masculino de noiva é navio. Repreenderam, riscaram, descontaram. Mas ela estava certa. Noivados são mares de barcos pares. Mia Couto, Poemas escolhidos
Mia Couto – A casa
Sei dos filhos pelo modo como ocupam a casa: uns buscam os recantos, outros existem à janela. A uns satisfaz uma sombra, a outros nem o mundo basta. Uns batem com a porta, outros hesitam como se não houvesse saída. Raras vezes sou pai. Sou sempre todos os meus filhos, sou a mão indecisa no …
Mia Couto – Para ti
Foi para ti que desfolhei a chuva para ti soltei o perfume da terra toquei no nada e para ti foi tudo Para ti criei todas as palavras e todas me faltaram no minuto em que talhei o sabor do sempre Para ti dei voz às minhas mãos abri os gomos do tempo assaltei o …
Mia Couto – Biofagia
Meu vício é vitalício: comer a Vida deitando-a entontecida sobre o linho do idioma. Nesse leito transverso dispo-a com um só verso. Até chegar ao fim da voz. Até ser um corpo sem foz. Mia Couto, Poemas escolhidos
Mia Couto – Lições
Não aprendi a colher a flor sem esfacelar as pétalas. Falta-me o dedo menino de quem costura desfiladeiros. Criança, eu sabia suspender o tempo, soterrar abismos e nomear as estrelas. Cresci, perdi pontes, esqueci sortilégios. Careço da habilidade da onda, hei de aprender a carícia da brisa. Trémula, a haste me pede o adiar da …
Mia Couto – Ignorância
A minha morte foi tão breve que nem dei conta da lágrima. Uns levam caixão para ir para a terra. Eu vou de terra para o chão. Mia Couto, Poemas escolhidos
Mia Couto – O degrau da lágrima
Nasci numa casa com escada. Aquela escada, dizem, nasceu antes da casa. O seu motivo era o de todas as escadas: medo de sermos terra, temor de lavas e monstros. Alteada sobre os céus a casa era mais que um ventre. Era um farol. Nesse farol sem mar, me lembro chorando sobre o primeiro degrau. …
Mia Couto – Testamento
Tudo o que tenho não tem posse: o rio e suas ocultas fontes, a nuvem grávida de novembro, o estilhaçar do riso em tua boca. Só me pertence o que não abraço. Eis como eterno me condeno: – amo o que não tem despedida. Mia Couto, Vagas e lumes
Mia Couto – Falas de uns
O caçador fala, o marinheiro cala. Um vive de morte emboscada, outro se amarra em cais de partida. O homem faz amor para se sentir bem. A mulher faz amor quando se sente bem. Uns falam. Outros apenas fogem do silêncio. Uns amam. Outros de si mesmos escapam. Mia Couto, Tradutor de chuvas
Mia Couto – Estrada de terra, na minha terra
Na minha terra há uma estrada tão larga que vai de uma berma à outra. Feita tão de terra que parece que não foi construída. Simplesmente, descoberta. Estrada tão comprida que um homem pode caminhar sozinho nela. É uma estrada por onde não se vai nem se volta. Uma estrada feita apenas para desaparecermos. …
Mia Couto – Desilusão
Desiludido com o mundo, Afrânio concluiu: “uns são filhos da puta, outros só não o são porque a mãe é estéril” Decidido ao suicídio, no alto da falésia hesitou: “no mar não me lanço que é demasiada sepultura. Como receberei flores entre tanto peixe faminto?” Ante a fogueira, Afrânio desfez as contas: “Na labareda, não. …
Mia Couto – Estátua
Da abandonada estátua partilho o mineral destino: encherei de vazio a pedra, e manterei os olhos polidos pelos dejetos dos pássaros. Da poesia fiel discípulo serei: abrirei a boca apenas para morrer. Mas se houver que proclamar a justa lembrança, direi: – a primeira pedra não foi para castigar mulher. Foi para esculpir uma deusa …
Mia Couto – Prematuros olhos
Muito antes de mim, os meus olhos andaram a despir o mundo. O que era roupa tombou num escuro abismo, desolada ave sob a chuva. E não era roupa, era alma de gente, sonhos à procura do tempo. Debruçada na margem, a lavadeira sabe: não é da roupa que cuida. É o próprio rio que …