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Mia Couto

Mia Couto

Mia Couto – As ruas

mia couto

No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
connosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?

Mia Couto, Tradutor de chuvas

Mia Couto

Mia Couto – A demora

mia couto

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz,
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto

Mia Couto – Ignorâncias paternas

mia couto

Altas horas,
já secos cuspos e copos,
meu pai dizia:
vou reparar o teto.

E saía, para além da noite,
por interditos caminhos.

Minha mãe
retorcia a alma
nas magras mãos.

No peito, não no ventre,
a mãe vai gerando filhos.

Por trás dos cortinados,
seu olhar se desfiava
no longo rosário da espera.

Cegos para as suas fadigas
nós, os filhos,
pedíamos que nos alonjasse o medo.

E a voz dela acontecia
como inundação do rio:
lavando águas e tristezas.

Pobre do vosso pai, suspirava.
Que pena ela dele sentia
que, no escuro, em vão procurava.

A nossa casa, de tão alta,
não poderia nunca ter telhado.

Filhos deitados,
medos dormindo:
antes do meu pai regressar
já minha mãe
tinha reparado
as telhas todas do mundo.

Mia Couto, Poemas escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – Amei-te sem saberes

mia couto

No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas

a espera do silêncio

Mia Couto, Raiz de Orvalho e outros poemas

Mia Couto

Mia Couto – Desleitos

mia couto

Recuso o leito.
Quero dormir
onde não tenha cabimento.

O problema da cama
é que, tal como no caixão,
ganhamos o tamanho da tábua.

Para sonhar,
prefiro o inteiro chão.

Tenho a sede
do embondeiro:
ao invés de beber,
eu engulo o chão inteiro.

Mia Couto, Poemas escolhidos

Mia Couto

Mia Couto – Beijo

mia couto

Não quero o primeiro beijo: 
basta-me 
o instante antes do beijo. 

Quero-me 
corpo ante o abismo, 
terra no rasgão do sismo. 

O lábio ardendo 
entre tremor e temor, 
o escurecer da luz 
no desaguar dos corpos: 
o amor 
não tem depois. 

Quero o vulcão 
que na terra não toca: 
o beijo antes de ser boca. 

Mia Couto, Tradutor de chuvas

Mia Couto

Mia Couto – Amor e alma

mia couto

Amar, 
só ama 
quem amou antes. 

Felizes 
os que sabem 
que, antes deles, 
se cumpriram amores. 

Afortunados 
os que de si sabem 
no milagre das estações. 

Venturosos 
os que escutam 
a mulher dizer: 
estou a sonhar um filho. 
E engravida. 

A alma que temos 
só fora de nós 
tem morada. 

E vai-nos chegando 
como a distante luz 
que em nós demora: 
– um olhar sem fundo, 
uma palavra cega 
à procura do mundo. 

Mia Couto, Vagas e Lumes

Mia Couto

Mia Couto – Viagem

mia couto

No caminho 
havia um rio. 
E o rio 
tinha da navalha 
o apurado fio. 
E cortou em dois o mundo. 
Chamei o peixe. 
E o peixe bebeu o rio. 

No céu 
havia nuvens. 
Eram nuvens velhas, cansadas. 
Chamei o pássaro. 
E o pássaro comeu o céu. 

Sobejou, 
sob os pés, a terra 
e a sua imensidão. 
Chamei o tempo. 
E o tempo comeu o chão. 

Sem terra, sem rio, sem céu, 
não me restou 
senão o vislumbrar 
de um sonho. 

E o sonho 
foi ave e peixe, 
foi tempo e foi céu. 
Depois, aos poucos, 
o sonho me devorou a vida. 

E, assim, 
em mim, 
nasceram todas as vidas. 

Mia Couto, Vagas e lumes

Mia Couto

Mia Couto – Raiz

mia couto

Não é o viver que me cansa. 

É o não haver morto 
que, em mim, não ressuscite. 

De tal modo 
que não encontro morte que seja minha. 

Alheio e distante 
se tornou o fim que trago em mim. 

Longínqua a fonte 
onde bebi a luz até ser pranto. 

O meu sonho 
vai lavrando noites 
e não há fundura na terra 
que receba o meu sono. 

A casa 
segue a vocação da asa. 

E eu, 
para ser feliz, 
esqueço-me que sou raiz. 

Mia Couto, Vagas e lumes

Mia Couto

Mia Couto – Gaiola

mia couto

A pluma pensa,
a ave pesa.

Mais leve é o céu
que não sabe voar.

Hoje, porém,
contra plumas e céus,
a gaiola se ergueu
e voou sobre a cidade,
grave e sem gravidade,
rumo às citadinas nuvens.

A gaiola
vingava a saudade
que a asa sentia do pássaro.

E cruzou
o agnóstico céu,
disputando lugares de anjos.

E era um milagre de coisa
profanando o firmamento.

Mas, afinal,
fui eu
e não a gaiola
quem do chão se soltou.

Flutuei
por entre nuvens
como se outra terra pisasse.
Nas alturas,
porém,
a asa, sem pluma,
de vertigem sofreu.

Entendi, então,
o meu voo corrigir.

Mas foi fatal o intento.

Porque o voar de ave
é como alma sem rasura:
sempre sem erro,
sempre segura da precisa altura.

Na aresta do chão
me despenhei,
tombando em cascata de sombra.

Inteiro sobre mim,
com peso de lápide,
um céu confirmava:
todos de si sabem
o lugar e a idade.

Desconhecemos apenas
onde somos eternidade.

Mia Couto, Vagas e lumes

Mia Couto

Mia Couto – Incertidão de óbito

mia couto

Quando forem de pedra
os teus olhos:
uns te darão por falecido.

Quando forem de fogo
os insetos que te devoram:
talvez então te digam defunto.

Mas nem pedra nem fogo
te darão ausência:
no teu ombro
pousa o voo dos regressos.

A vida
é um prematuro sonho.

Só morre
quem nunca viveu.

Mia Couto, Vagas e lumes

Mia Couto

Mia Couto – Fala de mãe e filho

mia couto

Meu filho:
onde vais
que tens do rio o caminhar?

Não espreites a estrada, mãe,
que eu nasci
onde o tempo se despenhou.

Meu filho:
onde te posso lembrar
se apenas te dei nome para te embalar?

Mãe, minha mãe:
não te pese saudade
que eu voltarei sempre
como quem chega do mar.

Meu filho:
onde te posso nascer
se meu ventre seco
nunca ninguém gerou?

Mãe, nascerás sempre
na pedra em que te escuto:
a tua ausência, meu luto,
teu corpo para sempre insepulto

Mia Couto, Tradutor de chuvas

Mia Couto

Mia Couto – Inundar de infância

mia couto

Hoje acordei sem dia,
a casa sem lar,
a cama sem leito.

Hoje acordei sem mim.

Saí à rua,
para me deixar possuir
pela simples leveza de existir.

Crianças passaram por mim,
aos bandos de espantar,
com folias e desmandos,
nessa fabricação de milagres
que é o absoluto brincar.

Dentro de mim
o universo se dissolveu
e um respirar de céu
em meu peito se inundou.

Seria a Vida,
seria o Tempo sem nostalgia,
ou seria, apenas, a poesia?

Sei que havia um fluir de rio
lavando antiquíssimas dores.

E do cristal de tristeza
que antes me negava o ar,
desse nó de vazio,
voltou a nascer o mar.

Mia Couto, Vagas e lume

Mia Couto

Mia Couto – O amor, talvez

mia couto

Este perder-me de mim
até não ser minha
a minha própria vida:
talvez seja isso
o que outros chamam de amor.

Sopro a pétala,
voam os dedos
pelo céu do teu corpo.

E quando te dispo
é para que o mundo emudeça,
num desmaio de ausência.

E talvez seja isso
que os outros chamam de amor.

Mia Couto, Vagas e lumes