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Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos – O morcego

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede…”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Augusto dos Anjos, Eu e outras poesias

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos – Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Augusto dos Anjos, Sonetos de amor e desamor

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos – Solitário

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio, e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta…
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

 

Augusto dos Anjos, Eu e outras poesias

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos – O meu nirvana

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias —

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!

Augusto dos Anjos, Eu e outras poesias

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos – Solilóquio de um visionário

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncole etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais…

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!

Augusto dos Anjos, Eu e outras poesias

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos – Monólogo de uma Sombra

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras, 
Do cosmopolitismo das moneras… 
Pólipo de recônditas reentrâncias, 
Larva de caos telúrico, procedo 
Da escuridão do cósmico segredo, 
Da substância de todas as substâncias! 

A simbiose das coisas me equilibra. 
Em minha ignota mônada, ampla, vibra 
A alma dos movimentos rotatórios… 
E é de mim que decorrem, simultâneas, 
A saúde das forças subterrâneas 
E a morbidez dos seres ilusórios! 

Pairando acima dos mundanos tetos, 
Não conheço o acidente da Senectus 
— Esta universitária sanguessuga 
Que produz, sem dispêndio algum de vírus, 
O amarelecimento do papirus 
E a miséria anatômica da ruga! 

Na existência social, possuo uma arma 
— O metafisicismo de Abidarma — 
E trago, sem bramânicas tesouras, 
Como um dorso de azêmola passiva, 
A solidariedade subjetiva 
De todas as espécies sofredoras. 

Como um pouco de saliva quotidiana 
Mostro meu nojo à Natureza Humana. 
A podridão me serve de Evangelho… 
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques 
E o animal inferior que urra nos bosques 
É com certeza meu irmão mais velho! 

Tal qual quem para o próprio túmulo olha, 
Amarguradamente se me antolha, 
À luz do americano plenilúnio, 
Na alma crepuscular de minha raça 
Como uma vocação para a Desgraça 
E um tropismo ancestral para o Infortúnio. 

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias, 
Trazendo no deserto das idéias 
O desespero endêmico do inferno, 
Com a cara hirta, tatuada de fuligens 
Esse mineiro doido das origens, 
Que se chama o Filósofo Moderno! 

Quis compreender, quebrando estéreis normas, 
A vida fenomênica das Formas, 
Que, iguais a fogos passageiros, luzem.
E apenas encontrou na idéia gasta, 
O horror dessa mecânica nefasta, 
A que todas as cousas se reduzem! 

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes, 
Sobre a esteira sarcófaga das pestes 
A mostrar, já nos últimos momentos, 
Como quem se submete a uma charqueada, 
Ao clarão tropical da luz danada, 
espólio dos seus dedos peçonhentos. 

Tal a finalidade dos estames! 
Mas ele viverá, rotos os liames 
Dessa estranguladora lei que aperta 
Todos os agregados perecíveis, 
Nas eterizações indefiníveis 
Da energia intra-atômica liberta! 

Será calor, causa úbiqua de gozo, 
Raio X, magnetismo misterioso, 
Quimiotaxia, ondulação aérea, 
Fonte de repulsões e de prazeres, 
Sonoridade potencial dos seres, 
Estrangulada dentro da matéria! 

E o que ele foi: clavículas, abdômen, 
O coração, a boca, em síntese, o Homem, 
— Engrenagem de vísceras vulgares — 
Os dedos carregados de peçonha, 
Tudo coube na lógica medonha 
Dos apodrecimentos musculares! 

A desarrumação dos intestinos 
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos 
Dentro daquela massa que o húmus come, 
Numa glutoneria hedionda, brincam, 
Como as cadelas que as dentuças trincam 
No espasmo fisiológico da fome. 

É uma trágica festa emocionante! 
A bacteriologia inventariante 
Toma conta do corpo que apodrece… 
E até os membros da família engulham, 
Vendo as larvas malignas que se embrulham 
No cadáver malsão, fazendo um s. 

E foi então para isto que esse doudo 
Estragou o vibrátil plasma todo, 
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!… 
Num suicídio graduado, consumir-se, 
E após tantas vigílias, reduzir-se 
À herança miserável de micróbios! 

Estoutro agora é o sátiro peralta 
Que o sensualismo sodomista exalta, 
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo…
Como que, em suas células vilíssimas, 
Há estratificações requintadíssimas 
De uma animalidade sem castigo. 

Brancas bacantes bêbedas o beijam. 
Suas artérias hírcicas latejam, 
Sentindo o odor das carnações abstêmias, 
E à noite, vai gozar, ébrio de vício, 
No sombrio bazar do meretrício, 
O cuspo afrodisíaco das fêmeas. 

No horror de sua anômala nevrose, 
Toda a sensualidade da simbiose, 
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos, 
Como no babilônico sansara, 
Lembra a fome incoercível que escancara 
A mucosa carnívora dos lobos. 

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda. 
Negra paixão congênita, bastarda, 
Do seu zooplasma ofídico resulta… 
E explode, igual à luz que o ar acomete, 
Com a veemência mavórtica do ariete 
E os arremessos de uma catapulta. 

Mas muitas vezes, quando a noite avança, 
Hirto, observa através a tênue trança 
Dos filamentos fluídicos de um halo 
A destra descarnada de um duende, 
Que, tateando nas tênebras, se estende 
Dentro da noite má, para agarrá-lo! 

Cresce-lhe a intracefálica tortura, 
E de su’alma na caverna escura, 
Fazendo ultra-epilépticos esforços, 
Acorda, com os candieiros apagados, 
Numa coreografia de danados, 
A família alarmada dos remorsos. 

É o despertar de um povo subterrâneo! 
É a fauna cavernícola do crânio 
— Macbeths da patológica vigília, 
Mostrando, em rembrandtescas telas várias, 
As incestuosidades sanguinárias 
Que ele tem praticado na família. 

As alucinações tácteis pululam. 
Sente que megatérios o estrangulam… 
A asa negra das moscas o horroriza; 
E autopsiando a amaríssirna existência 
Encontra um cancro assíduo na consciência 
E três manchas de sangue na camisa! 

Míngua-se o combustível da lanterna 
E a consciência do sátiro se inferna, 
Reconhecendo, bêbedo de sono, 
Na própria ânsia dionísica do gozo, 
Essa necessidade de horroroso, 
Que é talvez propriedade do carbono! 

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova 
De que a dor como um dartro se renova, 
Quando o prazer barbaramente a ataca… 
Assim também, observa a ciência crua, 
Dentro da elipse ignívoma da lua 
A realidade de uma esfera opaca. 

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, 
Abranda as rochas rígidas, torna água 
Todo o fogo telúrico profundo 
E reduz, sem que, entanto, a desintegre, 
Á condição de uma planície alegre, 
A aspereza orográfica do mundo! 

Provo desta maneira ao mundo odiento 
Pelas grandes razões do sentimento, 
Sem os métodos da abstrusa ciência fria 
E os trovões gritadores da dialética, 
Que a mais alta expressão da dor estética 
Consiste essencialmente na alegria. 

Continua o martírio das criaturas: 
— O homicídio nas vielas mais escuras, 
— O ferido que a hostil gleba atra escarva, 
— O último solilóquio dos suicidas — 
E eu sinto a dor de todas essas vidas 
Em minha vida anônima de larva!”

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos, 
Da luz da lua aos pálidos venábulos, 
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo, 
julgava ouvir monótonas corujas, 
Executando, entre caveiras sujas, 
A orquestra arrepiadora do sarcasmo! 

Era a elegia panteísta do Universo, 
Na podridão do sangue humano imerso, 
Prostituído talvez, em suas bases… 
Era a canção da Natureza exausta, 
Chorando e rindo na ironia infausta 
Da incoerência infernal daquelas frases. 

E o turbilhão de tais fonemas acres 
Trovejando grandíloquos massacres, 
Há-de ferir-me as auditivas portas, 
Até que minha efêmera cabeça 
Reverta à quietação da treva espessa 
E à palidez das fotosferas mortas!

Augusto dos Anjos, Eu e outras Poesias

Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos – Versos a um Cão

Que força pôde adstrita e embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?
Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vemiformes.
Cão! — Alma do inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais…
E irás assim, pelos séculos adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos teus pais!

Augusto dos Anjos, Eu e Outras Poesias