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Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – A Inegualável

Mário de Sá-Carneiro

Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de setim…
Teus dedos longos, de marfim,
Que os sombreassem joias pretas…

E tão febril e delicada
Que não podesses dar um passo –
Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de côr no regaço…

Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas –
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas…

Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata –
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata…

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Teus beijos, queria-os de tule,
Transparecendo carmim –
Os teus espasmos, de sêda…

Água fria e clara numa noite azul,
Água, devia ser o teu amor por mim…

Mário de Sá-Carneiro, Indícios de Oiro

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Certa voz na noite ruivamente…

Mário de Sá-Carneiro

Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada
em sons cor de amaranto, às noites de incerteza,
que eu lembro não sei de onde – a voz de uma princesa
bailando meia nua entre clarões de espada.

Leonina, ela arremessa a carne arroxeada;
e bêbada de si, arfante de beleza,
acera os seios nus, descobre o sexo… Reza
o espasmo que a estrebucha em alma copulada.

Entanto nunca a vi mesmo em visão. Somente
a sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim
não lhe desejo a carne – a carne inexistente…

É só de voz-em-cio a bailadeira astral
– e nessa voz-estátua, ah! nessa voz-total
é que eu sonho esvair-me em vícios de marfim…

Mário de Sá-Carneiro, Livro dos sonetos

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Fim

Mário de Sá-Carneiro

Quando eu morrer
Batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes
Façam estalar no ar chicotes
Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro…

 

Mário de Sá-Carneiro, Poesias de Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Inter-sonho

Mário de Sá-Carneiro

Numa incerta melodia
Toda a minh’alma se esconde.
Reminiscências de Aonde
Perturbam-me em nostalgia…

Manhã de armas! Manhã de armas!
Romaria! Romaria!

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Tateio… dobro… resvalo…

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Princesas de fantasia
Desencantam-se das flores…

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Que pesadelo tão bom…

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Pressinto um grande intervalo,
Deliro todas as cores,
Vivo em roxo e morro em som…

 

Mário de Sá-Carneiro,  Antologia

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – A queda

Mário de Sá-Carneiro

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir… Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço d’ouro,
Volve-se logo falso… ao longe o arremesso…
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro à míngua, de excesso.

Alteio-me na cor à força de quebranto,
Estendo os braços d’alma — e nem um espasmo venço!…
Peneiro-me na sombra — em nada me condenso…
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
— Vencer às vezes é o mesmo que tombar —
E como inda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideais, ascendo até ao fim:
Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso…
. . . . . . . . . . . . . . .

Tombei…
E fico só esmagado sobre mim!…

 

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Estátua falsa

Mário de Sá-Carneiro

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minh’alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar…

 

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Além-tédio

Mário de Sá-Carneiro

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim d’alma esquecida,
Dormir em paz num leito d’hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…

 

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – A noite de natal

Mário de Sá-Carneiro

Em a noite de Natal
Alegram-se os pequenitos;
Pois sabem que o bom Jesus
Costuma dar-lhes bonitos.

Vão se deitar os lindinhos
Mas nem dormem de contentes
E somente às dez horas
Adormecem inocentes.

Perguntam logo à criada
Quando acorde de manhã
Se Jesus lhes não deu nada.

– Deu-lhes sim, muitos bonitos.
– Queremo-nos já levantar
Respondem os pequenitos.

Mario de Sá-Carneiro, Antologia Poética 

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Dispersão

Mário de Sá-Carneiro

Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 

Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida… 

Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem. 

(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 

Porque um domingo é familia, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem familia). 

O pobre moço das ânsias… 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que te abismaste nas ânsias. 

A grande ave dourada 
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus. 

Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo: 
Eu fui amante inconstante 
Que se traíu a si mesmo. 

Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que projecto: 
Se me olho a um espelho, erro – 
Não me acho no que projecto. 

Regresso dentro de mim, 
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada, 
Sequinha, dentro de mim. 

Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida. 
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma. 

Saudosamente recordo 
Uma gentil companheira 
Que na minha vida inteira 
Eu nunca vi… Mas recordo 

A sua bôca doirada 
E o seu corpo esmaecido, 
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada. 

(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que não sonhei!…) 

E sinto que a minha morte – 
Minha dispersão total – 
Existe lá longe, ao norte, 
Numa grande capital. 

Vejo o meu último dia 
Pintado em rolos de fumo, 
E todo azul-de-agonia 
Em sombra e além me sumo. 

Ternura feita saudade, 
Eu beijo as minhas mãos brancas… 
Sou amor e piedade 
Em face dessas mãos brancas… 

Tristes mãos longas e lindas 
Que eram feitas pra se dar… 
Ninguém mas quis apertar… 
Tristes mãos longas e lindas… 

E tenho pêna de mim, 
Pobre menino ideal… 
Que me faltou afinal? 
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!… 

Desceu-me nalma o crepusculo; 
Eu fui alguém que passou. 
Serei, mas já não me sou; 
Não vivo, durmo o crepúsculo. 

Alcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal. 

Perdi a morte e a vida, 
E, louco, não enlouqueço… 
A hora foge vivida, 
Eu sigo-a, mas permaneço… 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 

Castelos desmantelados, 
Leões alados sem juba… 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Escavação

Mário de Sá-Carneiro

Numa ânsia de ter alguma cousa, 
Divago por mim mesmo a procurar, 
Desço-me todo, em vão, sem nada achar, 
E a minh’alma perdida não repousa. 

Nada tendo, decido-me a criar: 
Brando a espada: sou luz harmoniosa 
E chama genial que tudo ousa 
Unicamente à fôrça de sonhar… 

Mas a vitória fulva esvai-se logo… 
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo… 
– Onde existo que não existo em mim? 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 

Um cemitério falso sem ossadas, 
Noites d’amor sem bôcas esmagadas – 
Tudo outro espasmo que princípio ou fim… 

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Partida

Mário de Sá-Carneiro

Ao ver escoar-se a vida humanamente 
Em suas águas certas, eu hesito, 
E detenho-me às vezes na torrente 
Das coisas geniais em que medito. 

Afronta-me um desejo de fugir 
Ao mistério que é meu e me seduz. 
Mas logo me triunfo. A sua luz 
Não há muitos que a saibam reflectir. 

A minh’alma nostálgica de além, 
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto, 
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto 
Que tenho a fôrça de sumir também. 

Porque eu reajo. A vida, a natureza, 
Que são para o artista? Coisa alguma. 
O que devemos é saltar na bruma, 
Correr no azul á busca da beleza. 

É subir, é subir àlem dos céus 
Que as nossas almas só acumularam, 
E prostrados resar, em sonho, ao Deus 
Que as nossas mãos de auréola lá douraram. 

É partir sem temor contra a montanha 
Cingidos de quimera e d’irreal; 
Brandir a espada fulva e medieval, 
A cada hora acastelando em Espanha. 

É suscitar côres endoidecidas, 
Ser garra imperial enclavinhada, 
E numa extrema-unção d’alma ampliada, 
Viajar outros sentidos, outras vidas. 

Ser coluna de fumo, astro perdido, 
Forçar os turbilhões aladamente, 
Ser ramo de palmeira, água nascente 
E arco de ouro e chama distendido… 

Asa longinqua a sacudir loucura, 
Nuvem precoce de subtil vapor, 
Ânsia revolta de mistério e olor, 
Sombra, vertigem, ascensão – Altura! 

E eu dou-me todo neste fim de tarde 
À espira aérea que me eleva aos cumes. 
Doido de esfinges o horizonte arde, 
Mas fico ileso entre clarões e gumes!… 

Miragem rôxa de nimbado encanto – 
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço! 
Alastro, venço, chego e ultrapasso; 
Sou labirinto, sou licorne e acanto. 

Sei a distância, compreendo o Ar; 
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; 
Sou taça de cristal lançada ao mar, 
Diadema e timbre, elmo real e cruz… 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 

O bando das quimeras longe assoma… 
Que apoteose imensa pelos céus! 
A côr já não é côr – é som e aroma! 
Vem-me saudades de ter sido Deus… 

       *       *       * 

Ao triunfo maior, avante pois! 
O meu destino é outro – é alto e é raro. 
Únicamente custa muito caro: 
A tristeza de nunca sermos dois… 

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Como eu não Possuo

Mário de Sá-Carneiro

Olho em volta de mim. Todos possuem – 
Um afecto, um sorriso ou um abraço. 
Só para mim as ânsias se diluem 
E não possuo mesmo quando enlaço. 

Roça por mim, em longe, a teoria 
Dos espasmos golfados ruivamente; 
São êxtases da côr que eu fremiria, 
Mas a minh’alma pára e não os sente! 

Quero sentir. Não sei… perco-me todo… 
Não posso afeiçoar-me nem ser eu: 
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, 
Falta-me unção pra me afundar no lôdo. 

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser 
Forçoso me era antes possuir 
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher, 
E eu não logro nunca possuir!… 

Castrado de alma e sem saber fixar-me, 
Tarde a tarde na minha dor me afundo… 
Serei um emigrado doutro mundo 
Que nem na minha dor posso encontrar-me?… 

       *       *       *       *       * 

Como eu desejo a que ali vai na rua, 
Tão ágil, tão agreste, tão de amor… 
Como eu quisera emmaranhá-la nua, 
Bebê-la em espasmos d’harmonia e côr!… 

Desejo errado… Se a tivera um dia, 
Toda sem véus, a carne estilizada 
Sob o meu corpo arfando transbordada, 
Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria… 

Eu vibraria só agonizante 
Sobre o seu corpo de êxtases dourados, 
Se fôsse aquêles seios transtornados, 
Se fôsse aquêle sexo aglutinante… 

De embate ao meu amor todo me ruo, 
E vejo-me em destrôço até vencendo: 
É que eu teria só, sentindo e sendo 
Aquilo que estrebucho e não possuo. 

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão 

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro – Quase

Mário de Sá-Carneiro

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dor de ser-quase, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

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Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão