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Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – A mulher na noite

vinicius de moraes

Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.
A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas – vinhas andando e eu não
(te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus olhos.
Eu estava imóvel – tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam sobre os meus
(lábios.
Eu queria me levantar porque grandes reses me lambiam o rosto
E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas.
Uma angústia de morte começou a se apossar do meu ser
As formigas iam e vinham, os insetos procriavam e zumbiam do meu desespero
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.
Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe
E não havia mais vida na minha frente.

Vinicius de Moraes, Antologia poética

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Purificação

vinicius de moraes

Senhor, logo que eu vi a natureza
As lágrimas secaram.
Os meus olhos pousados na contemplação
Viveram o milagre de luz que explodia no céu.

Eu caminhei, Senhor.
Com as mãos espalmadas eu caminhei para a massa de seiva
Eu, Senhor, pobre massa sem seiva
Eu caminhei.
Nem senti a derrota tremenda
Do que era mau em mim.
A luz cresceu, cresceu interiormente
E toda me envolveu.

A ti, Senhor, gritei que estava puro
E na natureza ouvi a tua voz.
Pássaros cantaram no céu
Eu olhei para o céu e cantei e cantei.
Senti a alegria da vida
Que vivia nas flores pequenas
Senti a beleza da vida
Que morava na luz e morava no céu
E cantei e cantei.

A minha voz subiu até ti, Senhor
E tu me deste a paz.
Eu te peço, Senhor
Guarda meu coração no teu coração
Que ele é puro e simples.
Guarda a minha alma na tua alma
Que ela é bela, Senhor.
Guarda o meu espírito no teu espírito
Porque ele é a minha luz
E porque só a ti ele exalta e ama.

Vinicius de Moraes, Poesia

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – O bom pastor

vinicius de moraes

Amo andar pelas tardes sem som, brandas, maravilhosas
Com riscos de andorinhas pelo céu.
Amo ir solitário pelos caminhos
Olhando a tarde parada no tempo
Parada no céu como um pássaro em vôo
E que vem de asas largas se abatendo.
Amo desvendar a vaga penumbra que desce
Amo sentir o ar sem movimento, a luz sem vida
Tudo interiorizado, tudo paralisado na oração calma…

Amo andar nessas tardes…
Sinto-me penetrando o sereno vazio de tudo
Como um raio de luz.
Cresço, projeto-me ao infinito, agitando
Para consolar as árvores angustiadas
E acalmar os pinheiros moribundos.
Desço aos vales como uma sombra de montanha
Buscando poesia nos rios parados.
Sou como o bom-pastor da natureza
Que recolhe a alma do seu rebanho
No agasalho da sua alma…

E amo voltar
Quando tudo não é mais que uma saudade
Do momento suspenso que foi…
Amo voltar quando a noite palpita
Nas primeiras estrelas claras…
Amo vir com a aragem que começa a descer das montanhas
Trazendo cheiros agrestes de selva…
E pelos caminhos já percorridos, voltando com a noite
Amo sonhar…

Vinicius de Moraes, O Caminho para a Distância

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Quietação

vinicius de moraes

No espaço claro e longo
O silêncio é como uma penetração de olhares calmos…
Eu sinto tudo pousado dentro da noite
E chega até mim um lamento contínuo de árvores curvas.
Como desesperados de melancolia
Uivam na estrada cães cheios de lua.
O silêncio pesado que desce
Curva todas as coisas religiosamente
E o murmúrio que sobe é como uma oração da noite…

Eu penso em ti.
Minha boca cicia longamente o teu nome
E eu busco sentir no ar o aroma morno da tua carne.
Vejo-te ainda na visão que te precisou no espaço
Ouvindo de olhos dolentes as palavras de amor que eu te dizia
Fora do tempo, fora da vida, na cessação suprema do instante
Ouvindo, junto de mim, a angústia apaixonada da minha voz
Num desfalecimento.

Pelo espaço claro e longo
Vibra a luz branca das estrelas.
Nem uma aragem, tudo parado, tudo silêncio
Tudo imensamente repousado.
E eu cheio de tristeza, sozinho, parado
Pensando em ti.

Vinicius de Moraes, Poesia

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Uma mulher no meio do mar

vinicius de moraes

Na praia batida de vento a voz entrecortada chama
Dentro da noite amarga a grande lua está contigo e está com ela — pousa o teu rosto
sobre a areia!
A tua lágrima de homem ficará correndo sobre o teu corpo dormindo e te levará boiando
E talvez a tua mão inerme encontre a sua mão cheia de frio
Tudo está sozinho e o supremo abandono pousou sobre o corpo nu da que deixaste ir
A onda solitária é o berço do amor e há uma música eterna nas formas invisíveis
Passa o teu braço sobre o que foi o triste destroço de um outro mar bem mais revolto
E sentirás que nunca o pobre corpo foi mais flexuoso ao teu afago nem o olhar mais
aberto ao teu desejo.
Afaga os seios que os teus beijos poluíram e que a água amante fez altos e serenos
Mergulha os dedos pela última vez na úmida cabeleira espessa que se vai abrir como as
medusas
Porque também a lua vive a vez derradeira a visão escrava
Porque nunca mais também os olhos que estão parados te mostrarão o céu
E as linhas que vês desfeitas já pesam como que para o descanso do fundo que não
atingirás.
Não sentes que é preciso que ela vá, vá dar morada às algas que lhe cobrirão
amorosamente o corpo
Para fugir de ti que o cobrias apenas com a ardência imutável do teu desejo?

Oh, o amor que abre os braços à piedade!…

Vinicius de Moraes, A uma mulher – Poemas amorosos

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Amor

vinicius de moraes

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. Sra. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos vagos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
— Porque excessivamente grave é a Vida.

Vinicius de Moraes, Ao meu amor serei atento

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Bilhete a Baudelaire

vinicius de moraes

Poeta, um pouco à tua maneira
E para distrair o spleen
Que estou sentindo vir a mim
Em sua ronda costumeira
Folheando-te, reencontro a rara
Delícia de me deparar
Com tua sordidez preclara
Na velha foto de Carjat
Que não revia desde o tempo
Em que te lia e te relia
A ti, a Verlaine, a Rimbaud…
Como passou depressa o tempo
Como mudou a poesia
Como teu rosto não mudou!

Vinicius de Moraes, A rosa de Hiroshima

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – O prisioneiro

vinicius de moraes

Eu cerrei brandamente a janela sobre a noite quieta
E fiquei sozinho e parado, longe de tudo.
Nenhuma percepção — talvez uma leve sensação de frio no vento
E uma vaga visão de objetos boiando no vácuo dos olhos.
Nenhum movimento — distâncias infinitas em todas as coisas
No lençol branco que era outrora o grande esquecimento
No poeta que ontem era o refúgio e a lágrima
E no misericordioso olhar de luz que sempre fora o supremo apelo.
Nenhum caminho — nem a possibilidade de um gesto desalentado
Na angústia de não ferir o desespero do espaço imóvel.

Passariam as horas e nas horas o auge de cada instante de sofrimento
Passariam as horas até a hora de voltar para o amor das almas
E seguir com elas até a próxima noite.
Nenhum movimento — é preciso não despertar o sono dos que velam em espírito
É preciso esquecer que há poesia a ser colhida nas longas estradas.
Nenhum pensamento — a mobilidade será o horror de todas as noites
É preciso ser feliz na imobilidade.

Vinicius de Moraes, Forma e exegese e Ariana, a mulher

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Balada da praia do Vidigal

vinicius de moraes

A lua foi companheira
Na praia do Vidigal
Não surgiu, mas mesmo oculta
Nos recordou seu luar
Teu ventre de maré-cheia
Vinha em ondas me puxar
Eram-me os dedos de areia
Eram-te os lábios de sal.
Na sombra que ali se inclina
Do rochedo em miramar
Eu soube te amar, menina
Na praia do Vidigal…
Havia tanto silêncio
Que para o desencantar
Nem meus clamores de vento
Nem teus soluços de água.
Minhas mãos te confundiam
Com a fria areia molhada
Vencendo as mãos dos alísios
Nas ondas da tua saia.
Meu olhos baços de brumas
Junto aos teus olhos de alga
Viam-te envolta de espumas
Como a menina afogada.
E que doçura entregar-me
Àquela mole de peixes
Cegando-te o olhar vazio
Com meu cardume de beijos!
Muito lutamos, menina
Naquele pego selvagem
Entre areias assassinas
Junto ao rochedo da margem.
Três vezes submergiste
Três vezes voltaste à flor
E te afogaras não fossem
As redes do meu amor.
Quando voltamos, a noite
Parecia em tua face
Tinhas vento em teus cabelos
Gotas d’agua em tua carne.
No verde lençol da areia
Um marco ficou cravado
Moldando a forma de um corpo
No meio da cruz de uns braços.
Talvez que o marco, criança
Já o tenha lavado o mar
Mas nunca leva a lembrança
Daquela noite de amores
Na praia do Vidigal.

Vinicius de Moraes, A rosa de Hiroshima

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Soneto do amigo

vinicius de moraes

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica…

Vinicius de Moraes, Poemas esparsos

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Soneto do maior amor

vinicius de moraes

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal-aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer — e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

Vinicius de Moraes, Ao meu amor serei atento

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – O olhar para trás

vinicius de moraes

Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante…
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.

Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente…
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.

Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez… mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.

Alguém gritaria longe: — “Quantas rosas nos deu a primavera!…”
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o voo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos luminosos.

Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! — a sua voz é fresca como o orvalho…
Beijam-me a face — irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?

Voltaria o silêncio — seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas
Auscultaria o sopro, diria à toa — Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?

E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando…

No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.

É que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.

Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia…
Eu diria — Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que me chagaste a mim cheio de chagas?

Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita…
Eu te diria — Por que vieste te dar ao já vendido?

Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!

Fora, um riso de criança — longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!
Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.

Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.

Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha…
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada…
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus…

E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas… Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas… Voltais de novo arrastando negros véus…

Vinicius de Moraes, Forma e exegese e Ariana, a mulher

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Marinha

vinicius de moraes

Na praia de coisas brancas
Abrem-se às ondas cativas
Conchas brancas, coxas brancas
Águas-vivas.
Aos mergulhares do bando
Afloram perspectivas
Redondas, se aglutinando
Volitivas.
E as ondas de pontas roxas
Vão e vêm, verdes e esquivas
Vagabundas, como frouxas
Entre vivas!

Vinicius de Moraes, A rosa de Hiroshima

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Soneto do corifeu

vinicius de moraes

São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.

E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

Vinicius de Moraes, Ao meu amor serei atento

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes – Ilha do governador

vinicius de moraes

Esse ruído dentro do mar invisível são barcos passando
Esse ei-ou que ficou nos meus ouvidos são os pescadores esquecidos
Eles vêm remando sob o peso de grandes mágoas
Vêm de longe e murmurando desaparecem no escuro quieto.
De onde chega essa voz que canta a juventude calma?
De onde sai esse som de piano antigo sonhando a Berceuse?
Por que vieram as grandes carroças entornando cal no barro molhado?
Os olhos de Susana eram doces mas Eli tinha seios bonitos
Eu sofria junto de Susana — ela era a contemplação das tardes longas
Eli era o beijo ardente sobre a areia úmida.
Eu me admirava horas e horas no espelho.
Um dia mandei: “Susana, esquece-me, não sou digno de ti — sempre teu…”
Depois, eu e Eli fomos andando… — ela tremia no meu braço
Eu tremia no braço dela, os seios dela tremiam
A noite tremia nos ei-ou dos pescadores…
Meus amigos se chamavam Mário e Quincas, eram humildes, não sabiam
Com eles aprendi a rachar lenha e ir buscar conchas sonoras no mar fundo
Comigo eles aprenderam a conquistar as jovens praianas tímidas e risonhas.
Eu mostrava meus sonetos aos meus amigos — eles mostravam os grandes olhos abertos
E gratos me traziam mangas maduras roubadas nos caminhos.
Um dia eu li Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos.
Depois recebi um saco de mangas
Toda a afeição da ausência…
Como não lembrar essas noites cheias de mar batendo?
Como não lembrar Susana e Eli?
Como esquecer os amigos pobres?
Eles são essa memória que é sempre sofrimento
Vêm da noite inquieta que agora me cobre.
São o olhar de Clara e o beijo de Carmem
São os novos amigos, os que roubaram luz e me trouxeram.
Como esquecer isso que foi a primeira angústia
Se o murmúrio do mar está sempre nos meus ouvidos
Se o barco que eu não via é a vida passando
Se o ei-ou dos pescadores é o gemido de angústia de todas as noites?

Vincius de Moraes, A rosa de Hiroshima