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Cecília Meireles

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Gaita de lata

cecília meireles

Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua face,

desse teu riso de fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem horizonte.

Como, porém, já não medra,
cada um com a sorte sua!

(Não nascem lírios de lua
pelos corações de pedra…)

Cecília Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Conveniência

cecília meireles

CONVÉM que o sonho tenha margens de nuvens rápidas
e os pássaros não se expliquem, e os velhos andem pelo sol,
e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticídio

Convém tudo isso, e muito mais, e muito mais…
E por esse motivo aqui vou, como os papéis abertos
que caem das janelas dos sobrados, tontamente…

Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo.

E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria.
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva…)
E eu pensarei: «Que bom! nem é preciso respirar!…»

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Hoje desaprendo o que tinha aprendido até hoje…

cecilia meireles
Hoje desaprendo o que tinha aprendido até hoje
e que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.
Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.
 
E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras.
Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.
 
De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano
permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender. 

 

Cecilia Meireles, Cecilia de bolso

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Leveza

cecilia meireles

Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.
E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.
E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecilia Meireles, Obra poética

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Lamento da mãe orfã

cecilia meireles

Foge por dentro da noite
reaprende a ter pés e a caminhar,
descruza os dedos, dilata a narina à brisa dos ciprestes,
corre entre a luz e os mármores,
vem ver-me,
entra invisível nesta casa, e a tua boca
de novo à arquitetura das palavras
habitua,
e teus olhos à dimensão e aos costumes dos vivos!

Vem para perto, nem que já estejas desmanchando
em fermentos do chão, desfigurado e decomposto!
Não te envergonhes do teu cheiro subterrâneo,
dos vermes que não podes sacudir de tuas pálpebras,
da umidade que penteia teus finos, frios cabelos
cariciosos.

Vem como estás, metade gente, metade universo,
com dedos e raízes, ossos e vento, e as tuas veias
a caminho do oceano, inchadas, sentindo a inquietação das marés.

Não venhas para ficar, mas para levar-me, como outrora também te trouxe,
porque hoje és dono do caminho,
és meu guia, meu guarda, meu pai, meu filho, meu amor!

Conduze-me aonde quiseres, ao que conheces, – em teu braço
recebe-me, e caminhemos, forasteiros de mãos dadas,
arrastando pedaços de nossa vida em nossa morte,
aprendendo a linguagem desses lugares, procurando os senhores
e as suas leis,
mirando a paisagem que começa do outro lado de nossos cadáveres,
estudando outra vez nosso princípio, em nosso fim.

Cecília Meireles, Mar absoluto e outros poemas

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Agitado

cecilia meireles

Os violinos choram, soturnos,
Dentro da noite morta e triste,
Elegias vãs de Noturnos…
E nada existe… nada existe…

Sombras. A câmara apagada…
Sombras… Meu vulto é longe… ausente…
Silencio… Calma… Sonho… Nada…
Vago, leve, indecisamente…

Noite. Que noite!… Pelas bordas
Das jarras negras, morrem lírios…
Chopin. Falecem pelas cordas
Tremulas trêmulos martírios…

Andam, no vento, aromas soltos,
Saudades lentas… Alto, passa
O véu do luar nos céus revoltos,
Cheiros de signos de desgraça…

Cecilia Meireles, Nunca mais

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Canção da menina antiga

cecilia meireles

Esta é a dos cabelos louros
e da roupinha encarnada,
que eu via alimentar pombos,
sentadinha numa escada.
Seus cabelos foram negros,
seus vestidos de outras cores,
e alimentou, noutros tempos,
a corvos devoradores.
Seu crânio está vazio,
seus ossos sem vestimenta,
– e a terra haverá sabido
o que ela ainda alimenta.
Talvez Deus veja em seus sonhos
– ou talvez não veja nada –
que essa é a dos cabelos louros
e da roupinha encarnada.
Que do alto degrau do dia
às covas da noite, escuras,
desperdiçou sua vida
pelas outras criaturas…

Cecilia Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Assovio

cecilia meireles

Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
— a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – A chuva chove…

cecilia meireles

A chuva chove mansamente…
como um sono Que tranquilize,
pacifique, resserene…
A chuva chove mansamente…
Que abandono!

A chuva é a música de um poema de Verlaine…

E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono…
Véspera triste como a noite, que envenene
A alma, evocando coisas líricas de outono…

Cecilia Meireles, Nunca mais e poema dos poemas

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – A ninguém preciso dizer adeus

cecilia meireles

A ninguém preciso dizer adeus:
todos têm suas ocupações, e estão longe, embebidos
em seus enganos, que a felicidade imitam.
A ninguém preciso dizer adeus:
nenhum espaço formará lugar de ausência,
pois a presença nunca formou nenhum espaço.
A ninguém preciso dizer adeus:
parece triste partir assim, sem lembrança nem lagrima.
Não é, porém, mais alegre, desaparecer ao longe
sem ter deixado atrás nem lagrimas nem lembrança?

 

Cecilia Meireles, Poesias completas

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Canção do amor-perfeito

cecilia meireles

Eu vi o raio de sol 
beijar o outono. 
Eu vi na mão dos adeuses 
o anel de ouro. 
Não quero dizer o dia. 
Não posso dizer o dono. 

Eu vi bandeiras abertas 
sobre o mar largo 
e ouvi cantar as sereias. 
Longe, num barco, 
deixei meus olhos alegres, 
trouxe meu sorriso amargo. 

Bem no regaço da lua, 
já não padeço. 
Ai, seja como quiseres, 
Amor-Perfeito, 
gostaria que ficasses, 
mas, se fores, não te esqueço. 

 

Cecilia Meireles, Retrato natural

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Lua adversa

cecilia meireles

Tenho fases, como a lua, 
Fases de andar escondida, 
fases de vir para a rua… 
Perdição da minha vida! 
Perdição da vida minha! 
Tenho fases de ser tua, 
tenho outras de ser sozinha. 

Fases que vão e que vêm, 
no secreto calendário 
que um astrólogo arbitrário 
inventou para meu uso. 

E roda a melancolia 
seu interminável fuso! 

Não me encontro com ninguém 
(tenho fases, como a lua…). 
No dia de alguém ser meu 
não é dia de eu ser sua… 
E, quando chega esse dia, 
o outro desapareceu… 

 

Cecilia Meireles, Vaga música

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cantiga

cecilia meireles

La-lá-la-ri-la-lá-la-lá.
Já não se escutam rumores:
A noite não tarda a vir.
Vamos embalar as flores?
As flores querem dormir!…

La-lá-la-ri-la-lá-la-lá.

Cravos e lírios e rosas
Ao vento brando de outono,
Cravos e lírios e rosas
Vão-se fechando
De sono…

La-lá-la-ri-la-lá-la-lá.

Vamos embalar as flores?
As flores querem dormir!…
Já não se escutam rumores:
E a noite não tarda a vir!
La-lá-la-ri-la-lá-la-lá.

 

Cecilia Meireles, Obras completas

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – A Canção dos tamanquinhos

cecilia meireles

Troc…  troc… troc…  troc…
ligeirinhos, ligeirinhos,
troc…  troc… troc…  troc…
vão cantando os tamanquinhos…

Madrugada.   Troc… troc… 
pelas portas dos vizinhos
vão batendo, Troc…  troc…
vão cantando os tamanquinhos…

Chove.  Troc… troc…  troc…
no silêncio dos caminhos
alagados, troc…  troc…
vão cantando os tamanquinhos…

E até mesmo, troc…  troc…
os que têm sedas e arminhos,
sonham, troc…  troc… troc…
com seu par de tamanquinhos…

 

Cecilia Meireles, Obras poéticas

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Canção do caminho

cecilia meireles

Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa…
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa…)

 

Cecilia Meireles, Vaga música