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Mario Quintana

Mario Quintana

Mario Quintana – Lunar

As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar…

E que importa se uns nossos artefatos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus bodoques:
a própria lua tem sua usina de luar…

E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial com esta esferográfica.

Não tanto… Alguém me há de ler com um meio-sorriso
cúmplice… Deixo pena e papel… E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo…

Mario Quintana, Apontamentos de história sobrenatural

Mario Quintana

Mario Quintana – Canção de um dia de vento

mario quintana

O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.

As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz.

Nunca a água foi tão pura…
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.

E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule…

Menos um lugar na mesa,
Mais um nome na oração,
Da que consigo levara
Cruz, âncora e coração
(E o vento vinha ventando…)

Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão!

Mario Quintana, Canções seguido de Sapato florido e a rua dos cataventos

Mario Quintana

Mario Quintana – Retrato

mario quintana

Morreu ontem.
Portanto, o seu retrato está completo.
A longa vida — sabe Deus com que trabalho —
deixou-nos, na lembrança,
por final,
em companhia de um velhinho suave…

Mas um velhinho suave como os couros gastos,
as madeiras polidas pelo uso,
como os seixos rolados

— suave e rijo!

Sua voz grave e trêmula tinha o som do tempo
e nós sempre nos espantávamos de a estar ouvindo
porque era como se alguém tangesse o silêncio.

Mario Quintana, Apontamentos de história sobrenatural

Mario Quintana

Mario Quintana – Noturno

mario quintana

Este silêncio é feito de agonias
E de luas enormes, irreais,
Dessas que espiam pelas gradarias
Nos longos dormitórios de hospitais.

De encontro à Lua, as hirtas galharias
Estão paradas como nos vitrais
E o luar decalca nas paredes frias
Misteriosas janelas fantasmais…

Ó silêncio de quando, em alto mar,
Pálida, vaga aparição lunar,
Como um sonho vem vindo essa Fragata…

Estranha Nau que não demanda os portos!
Com mastros de marfim, velas de prata,
Toda apinhada de meninos mortos…

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – Maria

mario quintana

Que Linda estavas no dia
Da Primeira Comunhão.
Toda de branco, Maria,
Com rosas brancas na mão.

Nossa Senhora esquecia
Ao ver-te, a sua aflição,
E eu, contrito que heresia! –
Te rezava uma oração.

Pois quando te vi, de joelhos,
Pousar os lábios vermelhos
Nos pés do Cristo, supus

Que eras Santa Teresinha,
A mais linda e mais novinha
Das esposas de jesus!

 

Mario Quintana, Bau de espantos

Mario Quintana

Mario Quintana – Da vez primeira em que me assassinaram

mario quintana

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha…
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – Recordo ainda…

mario quintana

Recordo ainda… e nada mais me importa…
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta…

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedo-s de criança…

Estrada afora após segui… Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino… acreditai…
Que envelheceu, um dia, de repente!…

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – Tudo tão vago

mario quintana

Nossa Senhora
Na beira do rio
Lavando os paninhos
Do bento filhinho
São João estendia
São José enxugava
E o menino chorava
Do frio que fazia
Dorme criança
Dorme meu amor
Que a faca que corta
Dá talho sem dor

(de uma cantiga de ninar)

Tudo tão vago… Sei que havia um rio…
Um choro aflito… Alguém cantou, no entanto…
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu…

O Menino dormira… Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu…
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto…

E era a voz que eu ouvi em pequenino…
E era Maria, junto à correnteza
Lavando as roupas de Jesus Menino…

Eras tu… que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!…

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – O menino louco

mario quintana

Eu te paguei minha pesada moeda,
Poesia…
Ó teus espelhos deformantes e límpidos
Como a água! Sim, desde menino,
Meus olhos se abriam insones como flores no escuro
Até que, longe, no horizonte, eu via
A Lua vindo, esbelta como um lírio…
Às vezes numa túnica de Infanta
Sonâmbula… Às vezes virginalmente nua…
E era branca como as nozes que os esquilos
descascam na mata…
Pura como um punhal de sacrifício…
(Em meus lábios queimava-se, ignorada, a palavra
mágica!)

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – O poema

mario quintana

Um poema como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida
para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa
condição de poema.

Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – A casa fantasma

mario quintana

A casa está morta?
Não: a casa é um fantasma,
um fantasma que sonha
com a sua porta de pesada aldrava,
com os seus intermináveis corredores
que saíam a explorar no escuro os mistérios da noite
e que as luas, por vezes,
enchiam de um lívido assombro…
Sim!
agora
a casa está sonhando
com o seu pátio de meninos pássaros.
A casa escuta… Meu Deus! a casa está louca, ela não
[sabe
que em seu lugar se ergue um monstro de cimento e
[aço:
há sempre uma cidade dentro de outra
e esse eterno desentendido entre o Espaço e o Tempo.
Casa que teimas em existir
a coitadinha da velha casa!
Eu também não consegui nunca afugentar meus
[pássaros.

 

Mario Quintana, Baú de espantos

Mario Quintana

Mario Quintana – Ah, sim, a velha poesia…

mario quintana

Poesia, a minha velha amiga…
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma…
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas…)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Não estão ouvindo, lá fora, os grilos?
Sim, os grilos…
Os grilos são os poetas mortos.

Entrego-lhe grilhos aos milhões um lápis verde
um retrato
amarelecido um velho ovo de costura
os teus pecados as
reivindicações as explicações – menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera

o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos…

Pois bem,
às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que
parece nada tem a ver com os ingredientes mas que
tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse
gosto de nunca e de sempre.

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – Ritmo

mario quintana

Na porta
A varredeira varre o cisco
varre o cisco
varre o cisco

Na pia
a menininha escova os dentes
escova os dentes
escova os dentes

No arroio
a lavadeira bate roupa
bate roupa
bate roupa
até que enfim

se desenrola
toda a corda
e o mundo gira imóvel como um pião!

 

Mario Quintana, Antologia poética

Mario Quintana

Mario Quintana – Quando eu morrer

mario quintana

Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua…
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão…
Que linda a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!…

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas…

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto…

 

Mario Quintana, Melhores poemas

Mario Quintana

Mario Quintana – O segundo mandamento

mario quintana

Bem sei que não se deve dizer o Seu Santo nome em Vão.
Mas, agora,
o seu nome é apenas uma interjeição
como acontece com Minha Nossa Senhora!
este belíssimo grito tão certamente errado
como o faz tanta vez o povo em suas descobertas.
A voz do Povo é um Livro de Revelações.
Só tem que o tempo as foi sedimentando em sucessivas camadas
E elas agora nos dizem tanto como uma pedra.
Agora restam-nos apenas as palavras técnicas
pertencentes ao vocabulário inerte dos robôs.
Porém um dia as pedras se iluminarão milagrosamente por dentro.
porque só termina para todo o sempre o que foi
artificialmente construído…
Um dia,
um dia as pedras gritarão!

 

Mario Quintana, Baú de espantos