Navegando pela Categoria

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Porque meu bem faz aninhos

carlos drummond de andrade

Porque meu bem faz aninhos
um raio de sol dourado
entrelaçou mil carinhos
pelo céu, de lado a lado.

Um ramo de beijos ternos
balançava sobre os ninhos
entre miosótis eternos
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos
o rei, o valete, a sota
mais a fada e os anõezinhos
dançaram samba e gavota.

A nuvem mais cor-de-rosa
enfeitou-se de gatinhos
de bigode à Rui Barbosa
porque meu bem faz aninhos.

Porque meu bem faz aninhos,
eu ganhei um chocolate
que tinha sete gostinhos,
todos do melhor quilate.

Hoje eu brinco, pulo, canto,
assim como os passarinhos,
e mais eu canto me encanto
porque meu bem faz aninhos.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Porque

carlos drummond de andrade

Amor meu, minhas penas, meu delírio,
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá um’alma,
sabendo embora ser perdido intento

o de cingir-se forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes,
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.

Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não me libertas de teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,

por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
e fazer dessa chaga meu prazer?

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Destruição

carlos drummond de andrade

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Ausência

carlos drummond de andrade

Subir ao Pico do Amor
e lá em cima
sentir presença de amor.

No Pico do Amor amor não está.
Reina serenidade de nuvens
sussurrando ao coração: Que importa?

Lá embaixo, talvez, amor está;
em lagoa decerto, em grota funda.
Ou? mais encoberto ainda, onde se refugiam
coisas que não são, e tremem de vir a ser.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Amar

carlos drummond de andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Quero

carlos drummond de andrade

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.

Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.

Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amo amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não amor.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Soneto do pássaro

carlos drummond de andrade

I

Amar um passarinho é coisa louca.
Gira livre na longa azul gaiola
que o peito me constringe, enquanto a pouca
liberdade de amar logo se evola.

É amor meação? pecúlio? esmola?
Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.

O passarinho baixa a nosso alcance,
e na queda submissa um voo segue,
e prossegue sem asas, pura ausência,

outro romance ocluso no romance.
Por mais que amor transite ou que se negue,
é canto (não é ave) sua essência.

II

Batem as asas? Rosa aberta, a saia
esculpe, no seu giro, o corpo leve.
Entre músculos suaves, uma alfaia,
selada, tremeluz à vista breve.

O que, mal percebido, se descreve
em termos de pelúcia ou de cambraia,
o que é fogo sutil, soprado em neve,
curva de coxa atlântica na praia,

vira mulher ou pássaro? No rosto,
essa mesma expressão aérea ou grave,
esse indeciso traço de sol-posto,

de fuga, que há no bico de uma ave.
O mais é jeito humano ou desumano,
conforme a inclinação de meu engano.

 

Carlos Drummond de Andrade, A vida passada a limpo

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Também já fui Brasileiro

carlos drummond de andrade

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora cm que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

 

Carlos Drummond de Andrade, Fazendeiro do ar

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Notícias

carlos drummond de andrade

Entre mim e os mortos há o mar
e os telegramas.
Há anos que nenhum navio parte
nem chega. Mas sempre os telegramas
frios, duros, sem conforto.

Na praia, e sem poder sair.
Volto, os telegramas vêm comigo.
Não se calam, a casa é pequena
para um homem e tantas noticias.

Vejo-te no escuro, cidade enigmática.
Chamas com urgência, estou paralisado.
De ti para mim, apelos,
de mim para ti, silêncio.
Mas no escuro nos visitamos.

Escuto vocês todos, irmãos sombrios.
No pão, no couro, na superfície
macia das coisas sem raiva,
sinto vozes amigas, recados
furtivos, mensagens em código.

Os telegramas vieram no vento.
Quanto sertão, quanta renúncia atravessaram!
Todo homem sozinho devia fazer uma canoa
e remar para onde os telegramas estão chamando.

 

Carlos Drummond de Andrade, A rosa do povo

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – A hora do cansaço

carlos drummond de andrade

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

 

Carlos Drummond de Andrade, Corpo

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – A Ilusão do migrante

carlos drummond de andrade

Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é consequência
de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoma incessantemente
em nossas fundas paredes.

Novas coisas, sucedendo-se,
iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
do mais obscuro real,
essa ferida alastrada
na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado, enganoso.

 

Carlos Drummond de Andrade, Farewell

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – A grande dor das cousas que passaram

carlos drummond de andrade

A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo a minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!

 

Carlos Drummond de Andrade, Farewell

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – O relógio

carlos drummond de andrade

Nenhum igual àquele.

A hora no bolso do colete é furtiva,
a hora na parede da sala é calma,
a hora na incidência da luz é silenciosa.

Mas a hora no relógio da Matriz é grave
como a consciência.

E repete. Repete.

Impossível dormir, se não a escuto.
Ficar acordado, sem sua batida.
Existir, se ela emudece.

Cada hora é fixada no ar, na alma,
continua sonhando na surdez.
Onde não há mais ninguém, ela chega e avisa
varando o pedregal da noite.

Som para ser ouvido no longilonge
do tempo da vida.

Imenso
no pulso
este relógio vai comigo.

 

Carlos Drummond de Andrade, Boitempo – esquecer para lembrar

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Visão de Clarice Lispector

carlos drummond de andrade

Clarice
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são joias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.
Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice.

 

Carlos Drummond de Andrade, Discurso de primavera e algumas sombras

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – O minuto depois

carlos drummond de andrade

Nudez, último véu da alma
que ainda assim prossegue absconsa.
A linguagem fértil do corpo
não a detecta nem decifra.
Mais além da pele, dos músculos,
dos nervos, do sangue, dos ossos,
recusa o íntimo contato,
o casamento floral, o abraço
divinizante da matéria
inebriada para sempre
pela sublime conjunção.

Ai de nós, mendigos famintos:
pressentimos só as migalhas
desse banquete além das nuvens
contingentes de nossa carne.
E por isso a volúpia é triste
um minuto depois do êxtase.

 

Carlos Drummond de Andrade, Corpo