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Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Sentimental

carlos drummond de andrade

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

— Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando…
E há em todas as consciências este cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”

 

Carlos Drummond de Andrade, Fazendeiro do ar

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Cantiga de viúvo

carlos drummond de andrade

A noite caiu na minh’alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.

Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada. ..

acabou.

 

Carlos Drummond de Andrade, Fazendeiro do ar

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Lagoa

carlos drummond de andrade

Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
não sei se ele é bravo.
O mar não me importa.

Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
e calma também.

Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa. . .

 

Carlos Drummond de Andrade, Fazendeiro do ar

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Consolo na praia

carlos drummond de andrade

Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te — de vez — nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

 

Carlos Drummond de Andrade, Antologia poética

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Verdade

carlos drummond de andrade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

 

Carlos Drummond de Andrade, Corpo

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Sino

carlos drummond de andrade

O sino Elias não soa
por qualquer um,
mas, quando soa, reboa
como nenhum.
Com seu nome de profeta,
sua voz de eternidade,
o sino Elias transmite
as grandes falas de Deus
ao povo desta cidade,
as faltas que os outros sinos
nem sonham interpretar.
Coitados, de tão mofinos,
quando soa a voz de Elias,
têm ordem de se calar.
Têm ordem de se calar,
e toda a cidade, muda,
é som profundo no ar,
um som que liga o passado
ao futuro, ao mais que o tempo,
e no entardecer escuro
abre um clarão.
Já não somos prisioneiros
de um emprego, de uma região.
Precipitadas no espaço,
ao sopro do sino Elias,
nossa vida, nossa morte,
nossa raiz mais trançada,
nossa poeira mais fina,
esperança descarnada,
se dispersam no universo.

Chega, Elias, é demais.

 

Carlos Drummond de Andrade, Boitempo – esquecer para lembrar

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Balada do amor através das idades

carlos drummond de andrade

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
Troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal…
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira…
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Além da terra, além do céu

carlos drummond de andrade

Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Declaração de amor

carlos drummond de andrade

Minha flor minha flor minha flor. Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro. Minha peônia. Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão. Minha gérbera. Minha clívia. Meu cimbídio. Flor flor flor. Floramarílis. Floreanêmona. Florazálea. Ciematite minha. Catleia delfínio estrelítzia. Minha hortensegerânea. Ah, meu nenúfar. Rododendro e crisântemo e junquilho meus. Meu ciclâmen. Macieira-minha-do-japão. Calceolária minha. Daliabegônia minha. Forsitiaíris tuliparrosa minhas. Violeta… Amor-mais-que-perfeito. Minha urze. Meu cravo-pessoal-de-defunto. Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Amor e seu tempo

carlos drummond de andrade

Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – A Companheira

carlos drummond de andrade

A companheira
da vida inteira,
que a meu lado
une o passado
ao novo dia
em harmonia,
a sempre forte
e meu suporte
quando vacilo,
porte tranquilo,
voz de carinho
no meu caminho,
leal, paciente
constantemente,
simples, discreta
força do poeta,
quero-a no instante
final — constante
com sua mão
acarinhando
em gesto brando
meu coração.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – O quarto em desordem

carlos drummond de andrade

Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não se sabe como é feita: amor,
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,

verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Entre o ser e as coisas

carlos drummond de andrade

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

Às almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N’água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade – Os nomes da amada

carlos drummond de andrade

Alô, minha rosácea,
minha flor de lótus,
minha rainha dos jardins suspensos
de Alexandria,
meu raio de sol da madrugada,
meu nenúfar em lago de ternura,
alô, meu bem, minha coisinha louca!

É assim que de manhã ou tarde-noite
eu costumo chamá-la. E a cada nome novo
ela sorri e diz que está guardando
na agenda ou no caderninho da memória
esses doces epítetos do amor.

Sou poeta (serei?) e tenho obrigação
de inventar novas formas de carinho,
mas, por mais que invente, nunca inventarei
a forma ideal de dizer que a amo
tanto tanto tanto tanto tanto tanto
que não cabe nas palavras nem nos lábios.

 

Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor