Cora Coralina

Cora Coralina – Mulher da vida

cora coralina
image_pdfimage_print

Mulher da Vida,
Minha irmã.

De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da Vida,
Minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.

Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.

Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre
por aqueles que um dia
as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas.
Escorchadas. Discriminadas.

Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como a erva cativa
dos caminhos,
pisadas, maltradas e renascidas.

Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria,
da pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes
da Terra.

Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens
que a tinham maculado. Aflita, ouvindo
o tropel dos perseguidores e o sibilo
das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa
e lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra”.

As pedras caíram
e os cobradores deram as costas.

O Justo falou então a palavra
de equidade:
“Ninguém te condenou, mulher… nem
eu te condeno”.

A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios
detém as urgências brutais do homem
para que na sociedade
possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.

Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.

Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.

Mulher da Vida,
Minha irmã.

No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.

E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco
em novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrutível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.

Mulher da Vida,
Minha irmã.

Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no Reino de Deus.
Evangelho de São Mateus 21, 31.

Cora Coralina, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.

Você gostou deste poema?

Você Pode Gostar Também

Sem comentários

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.