Navegando pela Categoria

Cora Coralina

Cora Coralina

Cora Coralina – Aninha e suas pedras

cora coralina

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
enão entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – Minha Infância

cora coralina

Éramos quatro as filhas de minha mãe. 
Entre elas ocupei sempre o pior lugar. 
Duas me precederam – eram lindas, mimadas. 
Devia ser a última, no entanto, 
veio outra que ficou sendo a caçula. 

Quando nasci, meu velho Pai agonizava, 
logo após morria. 
Cresci filha sem pai, 
secundária na turma das irmãs. 

Eu era triste, nervosa e feia. 
Amarela, de rosto empalamado. 
De pernas moles, caindo à toa. 
Os que assim me viam – diziam: 
“- Essa menina é o retrato vivo 
do velho pai doente.” 

Tinha medo das estórias 
que ouvia, então, contar: 
assombração, lobisomem, mula-sem-cabeça. 
Almas penadas do outro mundo e do capeta. 
Tinha as pernas moles 
e os joelhos sempre machucados, 
feridos, esfolados. 
De tanto que caía. 
Caía à toa. 

Caía nos degraus. 
Caía no lajedo do terreiro. 
Chorava, importunava. 
De dentro a casa comandava: 
“- Levanta, moleirona.” 

Minhas pernas moles desajudavam. 
Gritava, gemia. 
De dentro a casa respondia: 
“- Levanta, pandorga”. 

Caía à toa… 
nos degraus da escada, 
no lajeado do terreiro. 
Chorava. Chamava. Reclamava. 
De dentro a casa se impacientava: 
“- Levanta, perna-mole…” 

E a moleirona, pandorga, perna-mole 
se levantava com seu próprio esforço. 
Meus brinquedos… 
Coquilhos de palmeira. 
Bonecas de pano. 
Caquinhos de louça. 
Cavalinhos de forquilha. 
Viagens infindáveis… 
Meu mundo imaginário 
mesclado à realidade. 

E a casa me cortava: “ menina inzoneira!” 
Companhia indesejável – sempre pronta 
a sair com minhas irmãs, 
era de ver as arrelias 
e as tramas que faziam 
para saírem juntas 
e me deixarem sozinha, 
sempre em casa. 

A rua… a rua!… 
(Atração lúdica, anseio vivo da criança, 
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas) 
– proibida às meninas do meu tempo. 
Rígidos preconceitos familiares, 
normas abusivas de educação 
– emparedavam. 

A rua. A ponte. Gente que passava, 
o rio mesmo, correndo debaixo da janela, 
eu via por um vidro quebrado, da vidraça 
empanada. 

Na quietude sepulcral da casa, 
era proibida, incomodava, a fala alta, 
a risada franca, o grito espontâneo, 
a turbulência ativa das crianças. 

Contenção… motivação… Comportamento estreito, 
limitando, estreitando exuberâncias, 
pisando sensibilidades. 
A gesta dentro de mim… 
Um mundo heroico, sublimado, 
superposto, insuspeitado, 
misturado à realidade. 

E a casa alheada, sem pressentir a gestação, 
acrimoniosa repisava: 
“- Menina inzoneira!” 
O sinapismo do ablativo 
queimava. 

Intimidada, diminuída. Incompreendida. 
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas. 
Repreensões ferinas, humilhantes. 
E o medo de falar… 
E a certeza de estar sempre errando… 
Aprender a ficar calada. 
Menina abobada, ouvindo sem responder. 

Daí, no fim da minha vida, 
esta cinza que me cobre… 
Este desejo obscuro, amargo, anárquico 
de me esconder, 
mudar o ser, não ser, 
sumir, desaparecer, 
e reaparecer 
numa anônima criatura 
sem compromisso de classe, de família. 

Eu era triste, nervosa e feia. 
Chorona. 
Amarela de rosto empalamado, 
de pernas moles, caindo à toa. 
Um velho tio que assim me via 
dizia: 
“- Esta filha de minha sobrinha é idiota. 
Melhor fora não ter nascido!” 

Melhor fora não ter nascido… 
Feia, medrosa e triste. 
Criada à moda antiga, 
– ralhos e castigos. 
Espezinhada, domada. 
Que trabalho imenso dei à casa 
para me torcer, retorcer, 
medir e desmedir. 
E me fazer tão outra, 
diferente, 
do que eu deveria ser. 
Triste, nervosa e feia. 
Amarela de rosto empapuçado. 
De pernas moles, caindo à toa. 
Retrato vivo de um velho doente. 
Indesejável entre as irmãs. 

Sem carinho de Mãe. 
Sem proteção de Pai… 
– melhor fora não ter nascido. 

E nunca realizei nada na vida. 
Sempre a inferioridade me tolheu. 
E foi assim, sem luta, que me acomodei 
na mediocridade de meu destino. 

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – Barco sem Rumo

cora coralina

Há muitos anos,
no fim da última guerra,
mais para o ano de 1945,
diziam os jornais de um navio fantasma
percorrendo os mares e procurando um porto.

Sua única identificação:
– drapejava no alto mastro uma bandeira branca.
Levava sua carga humana.
Salvados de guerra e de uma só raça.
Incerto e sem destino,
todos os portos se negaram a recebê-lo.

Acompanhando pelo noticiário do tempo
o drama daquele barco,
mentalmente e emocionalmente
eu arvorava em cada porto do meu País
uma bandeira de Paz
e escrevia em letras de diamantes:
Desce aqui.
Aceita esta bandeira que te acolhe fraterna e amiga.
Convive com o meu povo pobre.
Compreende e procura ser compreendido.
Come com ele o pão da fraternidade
e bebe a água pura da esperança.
Aguarda tempos novos para todos.

Não subestimes nossa ignorância e pobreza.
Aceita com humildade o que te oferecemos:
terra generosa e trabalho fácil.

Reparte com quem te recebe
teu saber milenar,
Judeu, meu irmão.

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – Lucros e perdas

cora coralina

I

Eu nasci num tempo antigo,
muito velho,
muito velhinho, velhíssimo.

II

Fui menina de cabelos compridos
trançados, repuxados, amarrados com tiras de pano.
Minha mãe não podia comprar fita.
Tinha vestidos compridos
de babado e barra redobrada
(não fosse eu crescer e o vestido ficar perdido).
Minha bisavó, setenta anos mais velha
do que eu, costurava meus vestidos.
Vestido ‘pregado’.
Sabe lá o que era isso?
A humilhação da menina
botando seios, vestindo
vestido pregado…
Tinha outros: os mandriões,
figurinos da minha bisavó.

III

Fui menina do tempo antigo.
Comandado pelos velhos:
Barbados, bigodudos, dogmáticos —
botavam cerco na mocidade.

Vigilantes fiscalizavam,
louvavam, censuravam.
Censores acatados. Ouvidos.
Conspícuos.
Felizmente, palavra morta.

VI

A gente era tão original
e os velhos não deixavam.
Não davam trégua.
Havia um gabarito estatuído decimal
e certa régua reguladora
de medidas exatas:
a rotina, o bom comportamento,
parecer com velhos,
ter atitudes de ancião.

V

Fui moça desse tempo.
Tive meus muitos censores
intra e extralar.
Botaram-me o cerco.
Juntavam-se, revelavam-se
incansáveis. Boa gente.
Queriam me salvar.

VI

Revendo o passado,
balanceando a vida…
No acervo do perdido,
no tanto do ganhado
está escriturado:
” — Perdas e danos, meus acertos.
— Lucros, meus erros”.
Daí a falta de sinceridade nos meus versos.

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – Nasci Antes do Tempo

cora coralina

Tudo que criei e defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por quê?

Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
Fulano nasceu antes do tempo.
Guardei

Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
Nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou.
Você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – O prato azul-pombinho

cora coralina

Minha bisavó – que Deus a tenha em glória-
sempre contava e recontava
em sentidas recordações
de outros tempos
a estória de saudade
daquele prato azul-pombinho.

Era uma estória minuciosa.
Comprida, detalhada.
Sentimental.
Puxada em suspiros saudosistas
e ais presentes.
E terminava invariavelmente,
depois do caso esmiuçado:
” – Nem gosto de lembrar disso…”
É que a estória se prendia
aos tempos idos em que vivia
minha bisavó
que fizera deles seu presente e seu futuro.

Voltando ao prato azul- pombinho
que conheci quando menina
e que deixou em mim
lembranla imperecível.
Era um prato sozinho,
último remanescente, sobrevivente,
sobra mesmo, de uma coleção,
de um aparelho antigo 
de 92 peças.
Isto contava com emoção, minha bisavó,
que Deus haja.

Era um prato original,
muito grande, fora de tamanho,
um tanto oval.
Prato de centro, de antigas mesas senhoriais
de família numerosa.
De faustos casamentos e dias de batizado.

Pesado.Com duas asas por onde segurar.
Prato de bom-bocado e de mães-bentas.
De fios de ovos.
De receita dobrada
de grandes pudins,
recendendo a cravo,
nadando em calda.

Era, na verdade, um enlevo.
Tinha seus desenhos
em miniaturas delicada:
Todo azul-forte,
em fundo claro 
num meio – relevo.
Galhadas de árvores e flores
estilizadas.
Um templo enfeitado de lanternas.
Figuras rotundas de entremez.
Uma ilha.Um quiosque rendilhado.
Um braço de mar.
Um pagode e um palácio chinês.
Uma ponte.
Um barco com sua coberta de seda.
Pombos sobevoando.

Minha bisavó
traduzia com sentimento sem igual,
a lenda oriental
estampada no fundo daquele prato.
Eu era toda ouvidos.
Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca,
com todos os sentidos,
aquela estória da Princesinha Lui,
lá da China – muito longe de Goiás –
que tinha fugido do palácio, um dia,
com um plebeu do seu agrado
e se refugiado num quiosque muito lindo
com aquele a quem queria,
enquanto o velho mandarim – seu pai –
concertava, com outro mandarim de nobre casta,
detalhes complicados e cerimoniosos
de seu casamento com um príncipe todo-poderoso,
chamado Li.

Então, o velho mandarim,
que aparecia também no prato, 
de rabicho e de quimono,
com gestos de espavento  e cercado de aparato,
decretou que os criados do palácio
incendiassem o quiosque
onde se encontravam os fugitivos namorados.

E lá estavam no fundo do prato,
– oh, encanto de minha meninice! –
pintadinhos de azul,
uns atrás dos outros – atravessando a ponte,
com seus chapeuzinhos de bateia
e suas japoninhas largas,
cinco miniaturas de chinês.
Cada qual com sua tocha acesa
– na pintura-
para por fogo no quiosque
– da pintura.

Mas ao largo do mar alto
balouçava um barco altivo
com sua coberta de prata,
levando longe o casal fugitivo.

Havia, como já disse,
pombos esvoaçando.
E um deles levava, numa argolinha do pé,
mensagem da boa ama, 
dando aviso a sua princesa e dama,
da vingança do velho mandarim.

Os namorados então
na calada da noite,
passaram sorrateiros para o barco,
driblando o velho, como se diz hoje.
E era aquele barco que balouçava
no mar alto da velha China,
no fundo do prato.

Eu era curiosa para saber o final da estória.
Mas o resto, por muito que pedisse,
não contava  minha bisavó.
Dali pra frente a estória era omissa.
Dizia ela – que o resto não estava no prato
nem constava do relato.
Do resto, ela não sabia.
E dava o ponto final recomendado.
” -Cuidado com esse prato!
É o último de 92″

Devo dizer  – esclarecendo,
esses 92 não foram do meu tempo.
Explicava minha bisabó
que os outros – quebrados, sumidos,
talvez roubados –
traziam outros recados,outras legendas,
prebendas de um tal Confúcio
e baladas de um vate
chamado Hipeng.

Do meu tempo só foi mesmo
aquele último
que, em raros dias de cerimônia
ou festas do Divino
figurava na mesa em grande pompa,
carregado de doces secos, variados,
muito finos,
encimados por uma coroa
alvacenta e macia
de cocadas-de-fita.

às  vezes, ia de empréstimo
à casa da boa tia Nhorita.
E era certo no centro da mesa
de aniversário, com sua montanha
de empadas, bem tostadas.
No dia seguinte, voltava.
conduzido por um portador
que  era sempre o Abdênago, preto de valor,
de alta e mútua confiança.

Voltava com muito-obrigados
e,  melhor – cheinho
de doces e salgados.
Tornava a relíquia para o relicário 
que no caso era um grande e velho armário,
alto e bem fechado.
-“Cuidado com o prato azul-pombinho”
dizia minha bisavó,
cada vez que o punha de lado.

Um dia, por azar,
sem se saber, sem se esperar,
artes do salta-caminho,
partes do capeta,
fora do seu lugar, apareceu quebrado,
feito em pedaços – sim senhor-
o prato azul-pombinho.
Foi um espanto. Um torvelinho.
Exclamações. Histeria coletiva.
Um deus nos acuda. Um rebuliço.
Quem foi, quem não foi?…

O pessoal da casa se assanhava.
Cada qual jurava por si.
Achava seus bons álibis.
Punia pelos  outros.
Se defendia com energia.
Minha bisavó teve  “aquela coisa”
(Ela sempre tinha “aquela coisa” em casos tais”)
Sobreveio o flato.
Arrotando alto, por fim, até chorou…

Eu (emocionada), vendo o pranto de minha bisavó,
lembrando só
da princesinha Lui-
que já tinha passado a viver no meu inconsciente
como ser presente,
comecei a chorar
– que chorona sempre fui.

Foi o bastante para ser apontada e acusada
de ter quebrado o prato.
Chorei mais alto, na maior tristeza,
comprometendo qualquer tentativa de defesa.
De nada valeu minha fraca negativa.
Fez-se o levantamento de minha vida pregressa
de menina
e a revisão de uns tantos processos arquivados.
Tinha já quebrado – em tempos alternados,
três pratos, uma compoteira de estimação,
uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.

Meus antecedente, até,
não eram  muito bons.
Com relação a coisas quebradas
nada me abonava.
E o processo se fez, à revelia da ré,
e com esta agravante:
tinha colado no meu ser magricela, de menina,
vários vocativos
adesivos, pejorativos:
inzoneira, buliçosa e malina.

Por indução e conclusiva,
era eu mesma  que tinha quebrado o prato azul-pombinho.

Reuniu-se o conselho de família
e  veio a condenação à moda do meu tempo:
uma boa tunda de chineladas.

Aí ponderou minha bisavó
umas  tantas atenuantes a meu favor.
E o castigo foi comutado
para outro, bem lembrado, que melhor servisse a todos
de escarmento e de lição:
trazer no pescoço por tempo indeterminado,
amarrado de um cordão,
um caco do prato quebrado.

O dito, melhor feito.
Logo se torceu no fuso
um cordão de novelão.
Encerdo foi.Amarrou-se a ele  um caco, de bom jeito,
em forma de meia-lua.
E a modo de colar, foi posto em seu lugar,
isto é, no meu pescoço.
Ainda mais
agravada a penalidade:
proibição de chegar na porta da rua..
Era assim, antigamente.

Dizia-se aquele, um castigo atinente, 
de ótima procedência.Boa coerência.
Exemplar e de alta moral.

Chorei sozinha minhas mágoas de criança.
Depois, me acostumei com aquilo.
no fim, até brincava com o caco pendurado
E foi assim que guardei
no armarinho da memória, bem guardado,
e posso contar aos meus leitores,
direitinho,
a estória, tão singela,
do prato azul- pombinho.

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – Estória do aparelho azul-pombinho

cora coralina

Minha bisavó – que Deus a tenha em bom lugar –
inspirada no passado
sempre tinha o que contar.
Velhas tradições. Casos de assombração.
Costumes antigos. Usanças de outros tempos.
Cenas da escravidão.
Cronologia superada
onde havia bangüês.
Mucamas e cadeirinhas.
Rodas e teares. Ouro em profusão,
posto a secar em couro de boi.
Crioulinho vigiando de vara na mão
pra galinha não ciscar.
Romanceiro. Estórias avoengas…
Por sinal que uma delas embalou minha infância.

Era a estória de um aparelho de jantar
que tinha sido encomendado de Goiás
através de uma rede de correspondentes
como era norma, naquele tempo.
Encomenda levada numa carta
em nobre estilo amistoso-comercial.
Bem notada. Fechada com obreia preta.

Carta que foi entregue de mão própria
ao correspondente na Corte
que tinha morada e loja de ferragem
na Rua do Sabão.
O considerado lusitano – metódico e pontual –,
o passou para Lisboa.
Lisboa passou para Luanda.
Luanda no usual
passou para Macau.
Macau se entendeu com mercadores chineses.

E um fabricante-loiceiro,
artesão de Cantão,
laborou o prodígio (no dizer de minha bisavó).

Um aparelho de jantar – 92 peças.
Enorme. Pesado, lendário.
Pintado, estoriado, versejado,
de loiça azul-pombinho.
Encomenda de um senhor cônego
de Goiás
para o casamento de seu sobrinho e afilhado
com uma filha de minha bisavó.

O cônego-tio e padrinho
pelo visto, relatado,
fazia gosto naquele matrimônio.
E o aparelho era para as bodas contratadas.
Um carro de boi –
15 juntas, 30 bois –
bem fornido e rejuntado
para viagem longa,
partiu de Goiás, no século passado,
do meado, pouco mais.
Levava seis escravos escolhidos
e um feitor de confiança.
Mantimentos para a viagem.
E mais, oitavas de ouro,
disfarçadas no fundo de um berrante,
para os imprevistos da delonga.

E o antigo carro
por ano e meio quase
rodou, sulcou, cantou e levantou poeira
rechinando
por caminhos e atalhos,
vilas e cidades, campos, sarobais.
Atravessou rios em balsas.
Vadeou lameiros, tremedais.
Varou Goiás – fim de mundo.
Cortou o sertão de Minas.
O planalto de São Paulo.

Foi receber o aparelho e mais sedas e xailes-da-índia
em Caçapava –
ponta dos trilhos da Dão Pedro Segundo –
ali por volta de 1860 e tantos.
Durou essa viagem, ir e voltar,
dezesseis meses e vinte e dois dias.
– As bodas em suspenso.

Enquanto se esperava, escravas de dentro
fiavam na roda e urdiam no tear.
Mucamas compenetradas, mestreadas por rica-dona,
sentadas nas esteiras, nos estrados de costura,
desfiavam, bordavam, crivavam,
repolegavam
o bragal de minha avó.
Sinhazinha de catorze anos – fermosura.
Prendada. Faceira.
Muito certa na Doutrina.
Entendida do governo de uma casa
e analfabeta.
Diziam os antigos educadores:
“– Mulher saber ler e escrever não é virtude”.

Afinal, muito esperado,
chegou a Goiás, sem novidades ou peça quebrada,
o aparelho encomendado
através de uma rede de correspondentes.
Embarcado num veleiro,
no porto de Macau.

As bodas marcadas
se fizeram com aparato.
Fartas comezainas.
Vinho do Espinho – Portugal –
da parte do correspondente.
Aparelhos de loiça da China.
Faqueiros e salvas de prata
Compoteiras e copos de cristal.
Na sobremesa minha bisavó exultava…
Figurava uma pinha de iludição.

Toda ela de cartuchos de papel verde calandrado,
cheios de confeitos de ouro em filigrana.
Mimo aos convidados graduados:
Governador da Província,
Cônegos, Monsenhores, Padres-Mestres,
Capitão-Mor.
Brigadeiros. Comendadores.
Juízes e Provedores.
Muita pompa e toda parentela.
Por amor e grandeza desse fasto
– casamento da sinhazinha Honória
com o sinhô-moço Joaquim Luís –
dois velhos escravos, já pintando,
receberam chorando
suas cartas de alforria.

Ficou mais, assentado e prometido
em palavra de rei testemunhado,
que o crioulinho
que viesse ao mundo
com o primogênito do casal
seria forro sem tardança na pia batismal.

E se criaria em regalia
com o senhorzinho,
nato fosse ele, em hora e dia.

Um rebento do casal veio ao mundo
no fim de nove meses.
e na senzala do quintal
nascia de uma escrava
um crioulinho.
Conforme o prometido – libertado
alforriado
na pia batismal.

(Na pia batismal, era, naquele tempo,
forma legal e usual de se alforriar um escravo).
Toda essa estória
por via de um aparelho de loiça da China,
destinado a Goiás.
Laborado de um oleiro, loiceiro de Cantão.
Embarcado num veleiro
no porto de Macau.

Cartas com obreias.
Correspondentes antigos.
Cartuchos de confeitos de ouro.
Alforrias de escravos.
Bodas de meu avô.
Bragal da minha avó.
Roda e tear, marafundas e repolegos.
Coisas do passado…
E – dizia  minha bisavó –
tudo se deu como o contado.

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – Minha Cidade

cora coralina

Goiás, minha cidade… 
Eu sou aquela amorosa 
de tuas ruas estreitas, 
curtas, 
indecisas, 
entrando, 
saindo 
uma das outras. 
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. 
Eu sou Aninha. 

Eu sou aquela mulher 
que ficou velha, 
esquecida, 
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes, 
contando estórias, 
fazendo adivinhação. 
Cantando teu passado. 
Cantando teu futuro. 

Eu vivo nas tuas igrejas 
e sobrados 
e telhados 
e paredes. 

Eu sou aquele teu velho muro 
verde de avencas 
onde se debruça 
um antigo jasmineiro, 
cheiroso 
na ruinha pobre e suja. 

Eu sou estas casas 
encostadas 
cochichando umas com as outras. 
Eu sou a ramada 
dessas árvores, 
sem nome e sem valia, 
sem flores e sem frutos, 
de que gostam 
a gente cansada e os pássaros vadios. 

Eu sou o caule 
dessas trepadeiras sem classe, 
nascidas na frincha das pedras: 
Bravias. 
Renitentes. 
Indomáveis. 
Cortadas. 
Maltratadas. 
Pisadas. 
E renascendo. 

Eu sou a dureza desses morros, 
revestidos, 
enflorados, 
lascados a machado, 
lanhados, lacerados. 
Queimados pelo fogo. 
Pastados. 
Calcinados 
e renascidos. 
Minha vida, 
meus sentidos, 
minha estética, 
todas as virações 
de minha sensibilidade de mulher, 
têm, aqui, suas raízes. 

Eu sou a menina feia 
da ponte da Lapa. 
Eu sou Aninha. 

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio

Cora Coralina

Cora Coralina – Conclusões de Aninha

cora coralina

Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
“A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.”
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.

 

Cora Coralina, O pequeno livro das grandes emoções, UNESCO 2009.