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Ana Martins Marques

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Relâmpagos

ana martins marques

Certas máquinas são feitas para o esquecimento.
Há dias em que sinto trabalharem em mim
as confusões do relâmpago.
Então coleciono letras, órbitas, radares.
A linha que me liga aos quadris dessa noite imensa
é a mesma que sai da garganta aberta do dia.
Vejo as estrelas desenharem-se em constelações,
sei muitas coisas rápidas, precisas,
por alguns instantes.

Ana Martins Marques, A vida submarina

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – O que eu sei?

ana martins marques

Sei poucas coisas sei que ler
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido as coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o mar
que só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo de vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas

Ana Martins Marques, O livro das dessemelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Esconderijo

ana martins marques

Estas são palavras que eu não
deveria dizer
palavras que ninguém
deveria ouvir
que elas permanecessem no silêncio
de onde vêm
no fundo escuro da língua
cheio de doçura e ruídos
com o ranço informulado
dos segredos
por via das dúvidas escondi-as aqui
neste poema
onde ninguém as vai encontrar

Ana Martins Marques, O livro das dessemelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Barcos de papel

ana martins marques

Os poemas em geral são feitos de palavras
no papel
seria melhor se fossem de pano
porque poderiam tomar chuva
ou de madeira
porque sustentariam uma casa
mas em geral são feitos de palavras
no papel
e por isso servem para poucas coisas
entre as quais não se encontra
tomar chuva
ou sustentar uma casa.

Dobrados sobre si mesmos,
lançam-se no mundo
com a coragem suicida
dos barcos de papel.

Ana Martins Marques, A vida submarina

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Mar

ana martins marques

Ela disse
mar
disse
às vezes vêm coisas improváveis
não apenas sacolas plásticas papelão madeira
garrafas vazias camisinhas latas de cerveja
também sombrinhas sapatos ventiladores
e um sofá
ela disse
é possível olhar
por muito tempo
é aqui que venho
limpar os olhos
ela disse
aqueles que nasceram longe
do mar
aqueles que nunca viram
o mar
que ideia farão
do ilimitado?
que ideia farão
do perigo?
que ideia farão
de partir?
pensarão em tomar uma estrada longa
e não olhar para trás?
pensarão em rodovias
aeroportos
postos de fronteira?
quando disserem
quero me matar
pensarão em lâminas
revólveres
veneno?
pois eu só penso
no mar

 

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Minas

ana martins marques

Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia

Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais

 

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Amor não feito

ana martins marques

No centro do que me lembro ficou
o amor não feito:
o que não foi rói o que foi
como a maresia

casa onde não morei país invisitado
praia inacessível avistada do alto
o que fazer do desejo
que não se gastou?

alegria não sentida amor não feito
prazer adiado sine die
palavra recolhida como um cão
vadio gesto interrompido beijo a seco

como parece banal agora
o que o barrou
compromissos decência covardia
não foi nada disso que ficou

mas precioso aceso
e perfeito
restou o desejo do amor
não feito

 

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Senha e contrassenha

ana martins marques

Uma palavra
deve-se pagar
com outra palavra
não necessariamente
do mesmo tamanho

um segredo se paga
com outro segredo
ainda que
inventado

isso não encontras
nos livros de etiqueta
nem nos manuais
de economia doméstica

a senha para entrar no teu corpo:
por que
por tanto tempo
me negaste?

 

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Há estes dias em que pressentimos na casa…

ana martins marques

Há estes dias em que pressentimos na casa
a ruína da casa
e no corpo
a morte do corpo
e no amor
o fim do amor
estes dias
em que tomar o ônibus é no entanto perdê-lo
e chegar a tempo é já chegar demasiado tarde
não são coisas que se expliquem
apenas são dias em que de repente sabemos
o que sempre soubemos e todos sabem
que a madeira é apenas o que vem logo antes
da cinza
e por mais vidas que tenha
cada gato
é o cadáver de um gato

 

Ana Martins Marques, O livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – O passado anda atrás de nós…

ana martins marques

O passado anda atrás de nós
como os detetives os cobradores os ladrões
o futuro anda na frente
como as crianças os guias de montanha
os maratonistas melhores
do que nós
salvo engano o futuro não se imprime
como o passado nas pedras nos móveis no rosto
das pessoas que conhecemos
o passado ao contrário dos gatos
não se limpa a si mesmo
aos cães domesticados se ensina
a andar sempre atrás do dono
mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem
pense em como do lodo primeiro surgiu esta poltrona este livro
este besouro este vulcão este despenhadeiro
à frente de nós à frente deles
corre o cão

 

Ana Martins Marques, O livro da semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – É bom lembrar lembranças dos outros…

ana martins marques

alguns de seus hábitos
usar à noite se possível
um de seus sonhos recorrentes
é bom encontrar uma vez ou outra pessoas
que conhecemos na infância
é bom nos esforçarmos por um tempo
para parecer com a lembrança delas
é bom topar de repente com um tanto de areia
no bolso de uma calça jeans
que há tempos não usamos
seguir as instruções do horóscopo de um signo
que rege um dia em que não nascemos
vestir-nos de acordo com a previsão do tempo
de uma cidade que nunca pensamos visitar
é bom ao menos uma vez na vida fazer uma viagem
em companhia de um parente morto
é bom escrever de vez em quando poemas
com viagens por dentro
com cidades e memórias de paisagens por dentro
que pareçam escritos
por outra pessoa

 

Ana Martins Marques, O Livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Acidente

ana martins marques

Escrevi este poema no último dia
depois disso não nos vimos mais
a princípio trocamos telefonemas
em que você sempre parecia estar prestes a perder o trem
enquanto eu sempre parecia ter acabado de perdê-lo
escrevi este poema depois do primeiro telefonema
você falava sobre vistos e repartições
e sobre como para conseguir um documento sempre é necessário um outro
que no entanto só se pode obter de posse daquele
eu falava sobre as noites perdidas na companhia de alguém
que nunca era você
depois aos poucos você deixou de ligar
escrevi este poema no segundo domingo
em que você de novo não telefonou
ao redor do poema como em volta de um acidente
juntou-se muita gente
para ver o que era

 

Ana Martins Marques, O Livro das semelhanças

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques – Esconderijo

ana martins marques

Estas são palavras que eu não
deveria dizer

palavras que ninguém
devia ouvir

que elas permanecessem no silêncio
de onde vêm

no fundo escuro da língua
cheio de doçura e ruídos

com o ranço informulado
dos segredos

por via das dúvidas escondi-as aqui
neste poema
onde ninguém as vai encontrar

Ana Martins Marques, O Livro das Semelhanças