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Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade – Adeus

eugénio de andrade

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
E o que nos ficou não chega
Para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
Gastámos as mãos à força de as apertarmos,
Gastámos o relógio e as pedras das esquinas
Em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro,
Era como se todas as coisas fossem minhas:
Quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
Porque ao teu lado
Todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
Era no tempo em que meus olhos
Eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
Uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
Já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
Tenho a certeza
De que todas as coisas estremeciam
Só de murmurar o teu nome
No silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade – Último poema

eugénio de andrade

É Natal, nunca estive tão só. 
Nem sequer neva como nos versos 
do Pessoa ou nos bosques 
da Nova Inglaterra. 
Deixo os olhos correr 
entre o fulgor dos cravos 
e os dióspiros ardendo na sombra. 
Quem assim tem o verão 
dentro de casa 
não devia queixar-se de estar só, 
não devia. 

 

Eugénio de Andrade, Rente ao dizer

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade – As mãos e os frutos

eugénio de andrade

Shelley sem anjos e sem pureza,
Aqui estou à tua espera nesta praça,
Onde não há pombos mansos mas tristeza
E uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
Das casas não vale a pena porque estão
Gastas pelo relógio e pelas luas
E pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te, mas não sei
Que dizer-te desta história de maneira
Que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
Tecendo estes versos e a noite
Que te há-de trazer e nos há-de deixar sós.

 

Eugénio de Andrade, Cincos séculos de sonetos Portugueses

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade – Soneto

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Amor desta tarde que arrefeceu
As mãos e os olhos que te dei;
Amor exato, vivo, desenhado
A fogo, onde eu próprio me queimei;

Amor que me destrói e destruiu
A fria arquitetura desta tarde
– só a ti canto, que nem eu já sei
Outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão
Para que o frio que me queima os olhos
Me trespasse e me suba ao coração;

Só a ti canto, que não há desastre
De onde não possa ainda erguer-me
Para encontrar de novo a tua face.

 

Eugénio de Andrade, Cinco séculos de sonetos Portugueses