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Elisa Lucinda

Elisa Lucinda

Elisa Lucinda – A fúria da beleza

elisa lucinda

Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa. Um gole.
Um bote nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar,
por causa e uma flor comum e misteriosa do caminho.
Uma delicada flor ordinária,
brotada da trivialidade do mato,
nascida do varejo da natureza,
me deu espanto!
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa…
é a porrada da beleza!
Eu dei de chorar de uma alegria funda,
quase tristeza.

Acontece às vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real.
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força
que eu dei de soluçar!
O esplendor do que eu vi era pancada,
era baque e era bonito demais!

Penso, às vezes, que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo
dentro da palavra impronunciável.
Sei que é desta flechada de luz
que nasce o acontecimento poético.

Poesia é quando a iluminação zureta,
bela e furiosa desse espanto
se transforma em palavra!
A florzinha distraída
existindo singela na rua paralelepípeda esta manhã,
doeu profundo como se passasse do ponto.
Como aquele ponto do gozo,
como aquele ápice do prazer
que a gente pensa que vai até morrer!
Como aquele máximo indivisível,
que, de tão bom, é bom de doer,
aquele momento em que a gente pede pára
querendo que e não podendo mais querer,
porque mais do que aquilo
não se aguenta mais,
sabe como é?

Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!

Elisa Lucinda, A fúria da beleza

Elisa Lucinda

Elisa Lucinda – Poema dos coletivos

elisa lucinda

Valham-me meus plurais!
A elegância dos coletivos que me deflora.
A errância dos meus erros
sempre no meio dos assuntos,
a errância dos meus medos
sempre no meio dos assuntos!
Ah, enxame, alcateia, resma, cáfila, chusma, cardume, elenco,
manada, matilha, frota, esquadrilha…
mais nada de mim levarás sem que eu vá também junto.
Sem que eu siga o rebanho das negras ovelhas com pelos jamaicanos;
Ah, bando de pássaros que levam minha alma no bico!
Ah, vara, cambada, corja de vagabundos… por onde bares me esqueceram?
Ah, baderneiros, em que tom, em que oitava me entoaram?
Valham-me meus punhais
que esqueci de mandar afinar meu piano!
Que esqueci que planos eu faria
pra quando atravessasse os arquipélagos, as cordilheiras…
Pra quando eu me abandonasse de vez numa deserta ilha,
pra quando o meu tratado não fosse o das Tordesilhas!
Ô meu Deus, desde quando tomei gosto pelas rimas?
Ô meu Deus, em que data me emaranhei pra sempre no Vesúvio das Palavras?
Ah, coletivos de socos sons,
ah, coletivo de socos bons,
ah, porrada!

 

Elisa Lucinda, A poesia do encontro

Elisa Lucinda

Elisa Lucinda – Lembrancinha do tempo

elisa lucinda

Desde pequena,
a poesia escolheu meu coração.
Através de sua inconfundível mão,
colheu-o e o fez
se certificando da oportunidade
e da profundeza da ocasião.
Como era um coração ainda raso, 
de criança que se deixa fácil levar pela mão,
sabia ela que o que era fina superfície clara até então ,
seria um dia o fundo misterioso do porão.
Desde menina,
a poesia fala ao meu coração.
Escuto a prosa,
quase toda em verso,
escuto-a como se fosse ainda miúda e
depois, só depois, é que dou minha opinião.
Desconfio que minha mãe me entregou a ela.
A suspeita, a desconfiança podem ser fato,
se a mão materna que já aos onze 
me levou à aula de declamação,
não for de minha memória uma delicada ilusão.
Desde pirralha e sapeca
a poesia, esperta, me chama ao quintal;
me seqüestra apontando ao meu olho o crepúsculo,
fazendo-me reparar dentro
da paisagem graúda,
o sutil detalhe do minúsculo.
Distingui pra mim a figura do seu fundo,
o retrato de sua moldura
e me deu muito cedo a 
loucura de amar as tardes com devoção.
Talvez por isso eu me 
entrelace desesperada nas saias dos acontecimentos,
me abrace, me embarace às suas pernas
almejando detê-los em mim, 
querendo fixá-los, porque sei que passarão.
A poesia que desde sempre, 
desde quando analfabeta das letras ainda eu era,
me freqüenta, faz com que eu escreva 
pra trazer lembrança de cada instante.
Assim até hoje ela me tenta e se tornou 
um jeito de eu fazer durar o durante,
de eu esticar o enquanto da vida 
e fazer perdurar o seu momento.
Desse encontro eu trago um verso como 
um chaveirinho trazido dum passeio a uma praia turista, 
um postal vindo de um museu renascentista,
um artesanato de uma bucólica vila,
uma fotografia gótica de uma arquitetura de convento,
uma xicrinha,
um pratinho com data e nome do estado daquele sentimento.
É isso a poesia:
um souvenir moderno,
um souvenir eterno do tempo.

 

Elisa Lucinda, Poesia do Encontro

Elisa Lucinda

Elisa Lucinda – Mas é a cara do Lino

elisa lucinda

Bonitinha, toda vida, ia ela, pequenininha,
às aulas dos adultos e só oito anos tinha.
O pai dava aulas de Latim, Português e Sociologia à noite
A menininha ouvia e via.
Quem é? Sua filha, professor?
E os olhos dele correspondiam ao sim
como um gozo esplendoroso, cravejado de orgulho
tal qual o anel reluzente e precioso que já era o nosso laço.
Eu era a sua cara e gostava era demais de ser parecida com ele
Meu cartão de visitas, dizia segurando meu queixo
com delicadeza de homem lindo.
Era meu pai.
Pai, por suas aulas comecei a amar as palavras,
Por seus provérbios e citações comecei a amar o jogo delas
E a possibilidade infinita que podiam erigir os tais pensamentos
Por sua divertida didática aprendi a amar a alegria de cada gramático movimento
No dia do meu casamento me deu de presente uma máquina de escrever
E com esse presente me deu estrutura
de passado, futuro e poder.

 

Elisa Lucinda, Poesia do Encontro

Elisa Lucinda

Elisa Lucinda – A Conta do sonho

elisa lucinda

Quanto custa um sonho? 
Alguma coisa ele sempre custa. 
Muitas vezes muitas coisas ele custa, 
outras vezes outros sonhos ele custa. 
Não importam os percalços, os sacrifícios, 
os espinhosos enredos. 
Não importa. 
Uma vez vivido, 
o sonho está sempre num ótimo preço! 

Elisa Lucinda, A Fúria da Beleza