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Cecília Meireles

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Explicação

cecilia meireles

O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo – e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce…
– espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.

Alguém conta a minha história
E alguém mata os personagens.)

 

Cecilia Meireles, Antologia Poética

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – O Cavalinho branco

cecilia meireles

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:

mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.

O cavalo sacode a crina
loura e comprida

e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos

a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia, tanto!
desde a madrugada!

Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada!

 

Cecilia Meireles, Ou Isto ou Aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Pranto no mar

cecilia meireles

Eu sempre te disse que era grande o oceano
para a nossa pequena barca.
Cantavas, quando eu te dava o desengano
de partir por água tão larga.

Não, tu não devias ter ido.
Mas foi tempo perdido.

Eu sempre te disse que os olhos de um morto
ficavam nas águas suspensos,
procurando os vivos, os mastros, o porto,
na oscilação de águas e ventos.

Não, tu não devias ter ido.
Mas era amor perdido.
Teço velas negras para a barca nova,
redes de prata para as ondas.
Ensinai-me, peixes, sua funda cova
nestas escuridões tão longas!

Não, tu não devias ter ido.
E isto é pranto perdido.

Cecilia Meireles, Retrato Natural

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Cantiga para adormecer Lulu

cecilia meireles

Lulu, lulu, lulu, lulu
vou fazer uma cantiga
para o anjinho de São Paulo
que criava uma lombriga.

A lombriga tinha uns olhos
de rubim.
Tinha um rabo revirado
no fim.

Tinha um focinho bicudo
assim.
Tinha uma dentuça muito
ruim.

Lulu, lulu, lulu, lulu
vou fazer uma cantiga
para o anjinho de São Paulo
que criava essa lombriga.

A lombriga devorara
seu pão
a banana, o doce, o queijo,
o pião.

A lombriga parecia
um leão.

E o anjinho andava triste
e chorão.

Lulu, lulu, lulu, lulu
Pois eu faço esta cantiga
para o anjinho de São Paulo
que alimentava a lombriga.

A lombriga ia fiando maior
que o anjinho de São Paulo!
(Que horror!)

Mas um dia chega um
caçador!
Firma a sua pontaria,
sem rumor.

Lulu, lulu, lulu, lulu
paro até minha cantiga
sobre o anjinho de São Paulo!

A espingarda faz pum pum!
pim pim!
O anjinho abana as asas
assim,

A lombriga salta fora
enfim!
(E foi correndo! E tocava
bandolim!)

Cecilia Meireles, Ou Isto ou Aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – A Bailarina

cecilia meireles

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta bem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.

Cecília Meireles, Ou Isto, ou Aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Quintanares

cecilia meireles

O Natal foi diferente
porque o Menino Jesus
disse à Senhora Sant’Ana:
“Vovozinha, eu já não gosto
das canções de antigamente:
cante as do Mario Quintana!”

Viram-se então os anjinhos
de livro aberto nas mãos
deslizar no ouro dos ares.
Estudaram nova solfa
pelos celestes caminhos
e ensaiaram quintanares.

Deixaram cair os versos
que já sabiam de cor
pelos telhados das casas.
E o milagre das cantigas
foi que até seres perversos
amanheceram com asas.

Cecilia Meireles, Poesias Completas de Mario Quintana

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Primeiro motivo da rosa

cecilia meireles

Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula, que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula, serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho… E frágil.

Cecilia Meireles, Antologia Poética 

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – A Noite

cecilia meireles

A noite é essa escuridão tão envolvente
que parece um exercício de morte:
assim vai desaparecendo tudo,
assim desaparecemos dos outros
e de nós.

Apenas respiramos.
Podem cortar esse último fio
— e o tear que somos se imobiliza.

A noite esconde a terra, o céu a casa,
os vossos rostos.

Estou novamente dentro de uma entranha?
Humana? Cósmica? Em que entranha me aninho,
onde se enrola o novelo da minha memória,
em que cofre, na escuridão?

Nossas asas estão docemente fechadas
e nossos olhos moram no pensamento.

Cada um tem a sua noite.
Cada coisa.
E tudo está na sua noite,
enquanto é noite.

O dia é um bailarino com sinos e espelhos

Interrompemos a treva onde aprendíamos lembranças;
e somos de repente uns falsos acordados. 

Cecilia Meireles, O Estudante Empírico 

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Festa

cecilia meireles

Jardins de raciocínio:
teoremas de flor em flor.
Assim as pedras e a areia.

Agora, os cultivadores contentes meditam.
E as tulipas de todas as cores
tecem longos tapetes sossegados.

Carrilhões d’água, repuxos de musica,
e um raio de sol desenhando hipotenusas
de canteiro em canteiro.

E pessoas de todas as idades
enternecendo-se entre as flores:
– Gente da Rainha Juliana, da Rainha Guilhermina,
do Príncipe Mauricio de Nassau.

Em que malas portentosas se guardam secularmente
chapéus de plumas e altas golas de lã?

E pessoas de todas as idades vêm de suas cidades,
de seus campos, de canais e moinhos
para sorrirem sobre as flores.
Extasiadas respiram o mês de maio.
Explicam todos os matizes,
pregas de pétalas, peso do pólen,
com sua experiência de artesanato subterrâneo.

Jardins de raciocínio:
– axiomas de raiz em raiz.

Tão simples, tão cordial, a festa no jardim:
Sapatos como pedras passam como borboletas.
Os cultivadores sorriem.

O ano inteiro se trabalhou por esse sorriso.
Por esse tapete de flores.

E o raio de sol re colhe o seus desenhos,
sobe para o céu, perde-se na bruma
como frágil escada de ouro.

E os anjos da alegria, de asas abertas,
acompanham Descartes.

Cecilia Meireles, Poesia Completa

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Da Solidão

cecilia meireles

Estarei só. Não por separada, não por evadida.
Pela natureza de ser só.

No entanto, a multidão tem sua musica,
seu ritmo, seu calor,
e deve ser uma felicidade, às vezes,
ser na multidão o que o peixe é no oceano.
Ah! mas quem sabe das solidões que haverá nessas águas enormes!

Estarei só. Recordarei essas cidades, esses tempos.
Recordarei esses rostos. Pode ser que recorde
alguma palavra.
Nada perturbou o meu estar só. Por vezes, com o rosto nas mãos,
pode ser que sentisse como os desertos amontoavam suas areias
entre meu pensamento e o horizonte.
Mas o deserto tem sua musica,
seu ritmo, seu calor.

Era uma solidão que outrora se levava nos dedos,
como a chave do silencio. Uma solidão de infância
sobre a qual se podia brincar,
como sobre um tapete.
Uma solidão que se podia ouvir, como quem olha para as arvores,
onde há vento.
Uma solidão que se podia ver, provar, sentir,
pensar, sofrer, amar,
uma solidão como um corpo, fechado sobre a noção que temos de nós:
como a noção que temos de nós.

E andava, e sorria, cumprimentava e fazia discursos,
dava autógrafos, abria a janela, conhecia gavetas,
chaves, endereços, comprava, lia,
recordava, sonhava,
às vezes pensava – Solidão – e logo seguia,
tinha até dinheiro comigo, tinha palavras, também,
que escolhia, dava, usava, recusava…

Solidão – dizia: fechava a tarde de mil portas,
andava por essas fortalezas da noite,
essas escadas, essas plataformas, essas pedras…
e deitava-me sobre o mar, sobre as florestas,
deitava-me assim – aldeias? cidades?
O sono é um límpido deserto – deitava-me nos ares,
onde quer que estivesse deitada.

Deitava-me nessas asas. Ia para outras solidões.

Se me chamares, responderei, mas serei solidão.
Serei solidão, se me esqueceres ou lembrares.
Qualquer coisa que sintas por mim, eu te retribuirei:
como o eco.
Mas és tu que vens e voltas:
a tua solidão e a minha solidão.

Cecilia Meireles, Poesia Completa

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Retrato

cecilia meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecilia Meireles, Viagem

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Romance II ou Do Ouro Incansável

Mil BATEIAS vão rodando
sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
infinitas galerias
penetram morros profundos.

De seu calmo esconderijo,
o ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra,
prestígio, poder, engenho . . .
É tão claro! — e turva tudo:
honra, amor e pensamento.

Borda flores nos vestidos,
sobe a opulentos altares,
traça palácios e pontes,
eleva os homens audazes,
e acende paixões que alastram
sinistras rivalidades.

Pelos córregos, definham
negros a rodar bateias.
Morre-se de febre e fome
sobre a riqueza da terra:
uns querem metais luzentes,
outros, as redradas pedras.

Ladrões e contrabandistas
estão cercando os caminhos;
cada família disputa
privilégios mais antigos;
os impostos vão crescendo
e as cadeias vão subindo.

Por ódio, cobiça, inveja,
vai sendo o inferno traçado.
Os reis querem seus tributos,
— mas não se encontram vassalos.
Mil bateias vão rodando,
mil bateias sem cansaço.

Mil galerias desabam;
mil homens ficam sepultos;
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranqüilo,
que a noite é um mundo de sustos.

Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro.

Cecilia Meireles, Romanceiro da Inconfidência 

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – O santo no Monte

No monte,
o Santo
em seu manto,
sorria tanto!

Sorria para uma fonte
que havia no alto do monte
e também porque defronte
se via o sol no horizonte.

No monte
o Santo
em seu manto
chora tanto!

Chora – pois não há mais fonte,
e agora há um muro defronte
que já não deixa do monte
ver o sol nem o horizonte.

No monte
o Santo
em seu manto
chora tanto!

(Duro
muro
escuro!)

Cecilia Meireles, Ou Isto ou Aquilo

Cecília Meireles

Cecilia Meireles – Natureza morta

Tinha uma carne de malmequeres, fina e translúcida,
com tênues veios de ametista, como o desenho sutil dos rios.
E ainda ficava mais branco, naquela varanda cheia de luar.

Os outros peixes nadavam gloriosos por dentro das ondas,
subiam, baixavam, corriam, brilhavam trêmulos de lua,
sem saberem daquele que não pertencia mais ao mar.

Deitado de perfil, em crespos verdes sossegados,
ia sendo servido, entre vinhos claros de altos copos,
envoltos numa gelada penugem de ar.

Seu olho de pérola baça, olho de gesso, consentia
que lhe fossem levando, pouco a pouco, todo o corpo…
E à luz do céu findava, e ao murmúrio do mar.

Cecilia Meireles, Antologia Poética

Cecília Meireles

Cecília Meireles – Pescaria

cecilia meireles

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.

Cecília Meireles, Ou isto ou aquilo