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Almeida Garrett

Almeida Garrett

Almeida Garrett – Ignoto Deo

Creio em ti, Deus: a fé viva
De minha alma a ti se eleva.
És: — o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz… e treva,
Em que — indistintas! — se envolve
Este espírito agitado,
De ti vem, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive de eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu,
Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nu
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência! a real beleza,
O puro amor — o prazer
Que não fatiga e não gasta…
Só por ti os pode ver
O que inspirado se afasta,
Ignoto Deus, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado
A teu altar, me prosto e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro — confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só spera.

Almeida Garrett, Folhas Caídas 

Almeida Garrett

Almeida Garrett – Seus Olhos

almeida garrett

Seus olhos – que eu sei pintar 
O que os meus olhos cegou – 
Não tinham luz de brilhar, 
Era chama de queimar; 
E o fogo que a ateou 
Vivaz, eterno, divino, 
Como facho do Destino. 

Divino, eterno! – e suave 
Ao mesmo tempo: mas grave 
E de tão fatal poder, 
Que, um só momento que a vi, 
Queimar toda a alma senti… 
Nem ficou mais de meu ser, 
Senão a cinza em que ardi. 

Almeida Garrett, Folhas Caídas

Almeida Garrett

Almeida Garrett – Este Inferno de Amar

almeida garrett

Este inferno de amar – como eu amo! – 
Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi? 
Esta chama que alenta e consome, 
Que é a vida – e que a vida destrói – 
Como é que se veio a atear, 
Quando – ai quando se há-de ela apagar? 

Eu não sei, não me lembra: o passado, 
A outra vida que dantes vivi 
Era um sonho talvez… – foi um sonho – 
Em que paz tão serena a dormi! 
Oh! que doce era aquele sonhar… 
Quem me veio, ai de mim! despertar? 

Só me lembra que um dia formoso 
Eu passei… dava o sol tanta luz! 
E os meus olhos, que vagos giravam, 
Em seus olhos ardentes os pus. 
Que fez ela? eu que fiz? – Não no sei; 
Mas nessa hora a viver comecei… 

Almeida Garrett, Folhas Caídas 

Almeida Garrett

Almeida Garrett – Não te Amo

almeida garrett

Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma. 
      E eu n’alma – tenho a calma, 
      A calma – do jazigo. 
      Ai! não te amo, não. 

Não te amo, quero-te: o amor é vida. 
      E a vida – nem sentida 
      A trago eu já comigo. 
      Ai, não te amo, não! 

Ai! não te amo, não; e só te quero 
      De um querer bruto e fero 
      Que o sangue me devora, 
      Não chega ao coração. 

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela. 
      Quem ama a aziaga estrela 
      Que lhe luz na má hora 
      Da sua perdição? 

E quero-te, e não te amo, que é forçado, 
      De mau, feitiço azado 
      Este indigno furor. 
      Mas oh! não te amo, não. 

E infame sou, porque te quero; e tanto 
      Que de mim tenho espanto, 
      De ti medo e terror… 
      Mas amar!… não te amo, não. 

Almeida Garrett, Folhas Caídas 

Almeida Garrett

Almeida Garrett – Adeus!

almeida garrett

Adeus! para sempre adeus!
Vai-te, oh! vai-te, que nesta hora
Sinto a justiça dos céus
Esmagar-me a alma que chora.
Choro porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem no sei,
Mas tu… tu nada perdeste:
Que este mau coração meu
Nos secretos escaninhos
Tem venenos tão daninhos
Que o seu poder só sei eu.

Oh! vai… para sempre adeus!
Vai, que há justiça nos céus.
Sinto gerar na peçonha
Do ulcerado coração
Essa víbora medonha
Que por seu fatal condão
Há-de rasgá-lo ao nascer:
Há-de sim, serás vingada,
E o meu castigo há-de ser
Ciúme de ver-te amada,
Remorso de te perder.

Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,
Que sou eu capaz agora
De te amar. — Ai! se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
Deste peito se ateasse
De amor o incêndio fatal!
Mais negro e feio no inferno
Não chameja o fogo eterno.
Que sim? Que antes isso? — Ai, triste!
Não sabes o que pediste.
Não te bastou suportar
O cepo-rei; impaciente
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!

E cuidas amar-me ainda?
Enganas-te: é morta, é finda,
Dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lágrima verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
Nesta seara de abrolhos,
Que a fonte secou. Agora
Amarás… sim, hás-de amar,
Amar deves… Muito embora…
Oh! mas noutro hás-de sonhar
Os sonhos de oiro encantados
Que o mundo chamou amores.

E eu réprobo… eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores…
Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida…
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar… Perdida,
Perdida serás — perdida.

Oh! vai-te, vai, longe, embora!
Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca… ai! não;
E que pude a sangue-frio,
Covarde, infame, vilão,
Gozar-te — mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Cometendo em cada beijo
Um crime… Ai! triste, não chores,
Não chores, anjo do céu,
Que o desonrado sou eu.
Perdoar-me tu?… Não mereço.
A imundo cerdo voraz
Essas pérolas de preço
Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada, te há-de admirar,
Despeitosa, respeitar,
Mas indulgente… Oh! o perdão
É perdido no vilão,
Que de ti há-de zombar.

Vai, vai… para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
Demais, e demais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
Como é negro este aleijão
Donde me vem sangue às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra — e não cabe
Nele uma ideia dos céus…
Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!

Almeida Garrett, Folhas Caídas 

Almeida Garrett

Almeida Garrett – Quando eu sonhava

Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora que estou desperto,
Agora a vejo fixar…
Para quê? — Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava — mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia…
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Almeida Garrett, Folhas Caídas