O deus a quem um homem da linhagem de Atreu
capturou numa praia que o mormaço lacera,
transformou-se em leão, em dragão, em pantera,
numa árvore e em água. Porque a água é Proteu.
É a nuvem, a imemorável nuvem, é a glória
do ocaso que submerge, vermelho, os arrabaldes;
é o Maelström tecido pelos vórtices gelados,
e a lágrima inútil que dedico a tua memória.
Foi, nas cosmogonias, o começo secreto
da terra que alimenta, do fogo que devora,
dos deuses que comandam o poente e a aurora.
(Assim afirmam Sêneca e Tales de Mileto.)
O mar e a movediça montanha que demole
a embarcação de ferro são só tuas anáforas,
e o tempo irreversível que nos fere e que foge,
água, é pura e simplesmente uma de tuas metáforas.
Foste, sob ruinosos ventos, o labirinto
sem muros nem janela, cujos caminhos grises
longamente desviaram o desejado Ulisses,
da Morte garantida e do Acaso indistinto.
Brilhas como as lâminas perversas dos alfanjes,
hospedas monstros e pesadelos, como o sonho.
As linguagens do homem te mostram mais risonho
e tua fuga se chama o Eufrates ou o Ganges.
(Dizem sagrada a água do derradeiro,
mas como os mares urdem obscuros câmbios
e o planeta é poroso, também é verdadeiro
afirmar que todo homem já se banhou no Ganges.)
De Quincey, no tumulto dos seus sonhos, viu isto:
empedrar-se teu mar de rostos e de nações;
aplacaste a exasperação das gerações,
lavaste a carne de meu pai e a carne de Cristo.
Eu te suplico, água. Por este sonolento
novelo de inúmeras palavras que te digo,
lembra-te de Borges, teu nadador, teu amigo.
Não faltes a meus lábios no último momento.
Jorge Luis Borges, o outro, o mesmo – Tradução, Heloísa Jahn