Eugénio de Andrade – Arrepio na tarde

Não sei quem, nem em que lugar, 
mas alguém me deve ter morrido. 
Senti essa morte num arrepio da tarde. 
Qualquer amigo, um dos vários 
que não conheço e só a poesia 
sustenta. Talvez a morte fosse 
outra: um pequeno réptil 
no sol súbito e quente de Março 
esmagado por pancada certeira; 
um cão atropelado por um bruto 
que, ao volante, se julga um deus 
de arrabalde, com sucesso garantido 
junto de três ou quatro putas de turno. 
Talvez a de uma estrela, porque também 
elas morrem, também elas morrem. 

Eugénio de Andrade, Os sulcos da sede