Cora Coralina – Minha Infância

Éramos quatro as filhas de minha mãe. 
Entre elas ocupei sempre o pior lugar. 
Duas me precederam – eram lindas, mimadas. 
Devia ser a última, no entanto, 
veio outra que ficou sendo a caçula. 

Quando nasci, meu velho Pai agonizava, 
logo após morria. 
Cresci filha sem pai, 
secundária na turma das irmãs. 

Eu era triste, nervosa e feia. 
Amarela, de rosto empalamado. 
De pernas moles, caindo à toa. 
Os que assim me viam – diziam: 
“- Essa menina é o retrato vivo 
do velho pai doente.” 

Tinha medo das estórias 
que ouvia, então, contar: 
assombração, lobisomem, mula-sem-cabeça. 
Almas penadas do outro mundo e do capeta. 
Tinha as pernas moles 
e os joelhos sempre machucados, 
feridos, esfolados. 
De tanto que caía. 
Caía à toa. 

Caía nos degraus. 
Caía no lajedo do terreiro. 
Chorava, importunava. 
De dentro a casa comandava: 
“- Levanta, moleirona.” 

Minhas pernas moles desajudavam. 
Gritava, gemia. 
De dentro a casa respondia: 
“- Levanta, pandorga”. 

Caía à toa… 
nos degraus da escada, 
no lajeado do terreiro. 
Chorava. Chamava. Reclamava. 
De dentro a casa se impacientava: 
“- Levanta, perna-mole…” 

E a moleirona, pandorga, perna-mole 
se levantava com seu próprio esforço. 
Meus brinquedos… 
Coquilhos de palmeira. 
Bonecas de pano. 
Caquinhos de louça. 
Cavalinhos de forquilha. 
Viagens infindáveis… 
Meu mundo imaginário 
mesclado à realidade. 

E a casa me cortava: “ menina inzoneira!” 
Companhia indesejável – sempre pronta 
a sair com minhas irmãs, 
era de ver as arrelias 
e as tramas que faziam 
para saírem juntas 
e me deixarem sozinha, 
sempre em casa. 

A rua… a rua!… 
(Atração lúdica, anseio vivo da criança, 
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas) 
– proibida às meninas do meu tempo. 
Rígidos preconceitos familiares, 
normas abusivas de educação 
– emparedavam. 

A rua. A ponte. Gente que passava, 
o rio mesmo, correndo debaixo da janela, 
eu via por um vidro quebrado, da vidraça 
empanada. 

Na quietude sepulcral da casa, 
era proibida, incomodava, a fala alta, 
a risada franca, o grito espontâneo, 
a turbulência ativa das crianças. 

Contenção… motivação… Comportamento estreito, 
limitando, estreitando exuberâncias, 
pisando sensibilidades. 
A gesta dentro de mim… 
Um mundo heroico, sublimado, 
superposto, insuspeitado, 
misturado à realidade. 

E a casa alheada, sem pressentir a gestação, 
acrimoniosa repisava: 
“- Menina inzoneira!” 
O sinapismo do ablativo 
queimava. 

Intimidada, diminuída. Incompreendida. 
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas. 
Repreensões ferinas, humilhantes. 
E o medo de falar… 
E a certeza de estar sempre errando… 
Aprender a ficar calada. 
Menina abobada, ouvindo sem responder. 

Daí, no fim da minha vida, 
esta cinza que me cobre… 
Este desejo obscuro, amargo, anárquico 
de me esconder, 
mudar o ser, não ser, 
sumir, desaparecer, 
e reaparecer 
numa anônima criatura 
sem compromisso de classe, de família. 

Eu era triste, nervosa e feia. 
Chorona. 
Amarela de rosto empalamado, 
de pernas moles, caindo à toa. 
Um velho tio que assim me via 
dizia: 
“- Esta filha de minha sobrinha é idiota. 
Melhor fora não ter nascido!” 

Melhor fora não ter nascido… 
Feia, medrosa e triste. 
Criada à moda antiga, 
– ralhos e castigos. 
Espezinhada, domada. 
Que trabalho imenso dei à casa 
para me torcer, retorcer, 
medir e desmedir. 
E me fazer tão outra, 
diferente, 
do que eu deveria ser. 
Triste, nervosa e feia. 
Amarela de rosto empapuçado. 
De pernas moles, caindo à toa. 
Retrato vivo de um velho doente. 
Indesejável entre as irmãs. 

Sem carinho de Mãe. 
Sem proteção de Pai… 
– melhor fora não ter nascido. 

E nunca realizei nada na vida. 
Sempre a inferioridade me tolheu. 
E foi assim, sem luta, que me acomodei 
na mediocridade de meu destino. 

Cora Coralina, Melhores Poemas, Seleção Darcy França Denófrio